Revelado no Festival de Locarno de 2021, Pathos Ethos Logos, de Joaquim Pinto / Nuno Leonel, resiste a qualquer tentativa de descrição. Desde logo, porque as suas três partes somam mais de dez horas (641 minutos, para sermos exatos). Depois, porque através das suas personagens e histórias cruzadas deparamos com sinais muito concretos do nosso presente, sempre pontuados por uma vibrante dimensão espiritual. Os três filmes - que existem como três partes de um só filme - estarão a partir de amanhã no cinema Ideal, em Lisboa (para depois começarem a circular por todo o país), levando-nos a questionar o que é, o que pode ser, o cinema aqui e agora. Os realizadores responderam, por escrito, às perguntas do DN..A escolha do título Pathos Ethos Logos remete-nos para Aristóteles e todo o seu pensamento sobre a comunicação humana. Será que, neste atribulado século XXI, poderíamos ou deveríamos ser mais aristotélicos? O filme foi desenvolvido, desde as primeiras filmagens em 2014 até à sua conclusão em 2021, na intuição de que se vivia / vive num estado coletivo de suspensão, alienação e amnésia em relação a um processo histórico de agudização brutal da violência e dos conflitos. Daí termos dado à produtora deste filme o nome de Avant-Guerre..De facto, a inspiração e o ponto de partida para o filme foram escritos e legados de algumas mulheres que ecoam o génio grego, desde a Ilíada a Platão, culminando nos Evangelhos, para se ir construindo num processo pontuado por perdas e sofrimento físico..Inicialmente, o filme chamava-se Pathos, no sentido original da expressão - sofrimento e experiência que advém da consciência de existir no tempo. Pathos Ethos Logos surgiu quando decidimos organizar o projeto em três partes. Estar consciente das estratégias da retórica é simplesmente mais um passo para descodificar os discursos constantes que nos são impostos, não é um roteiro a seguir..Cristo está presente em toda a trilogia - como imagem, pensamento, inspiração filosófica e impulso moral. Poderão aceitar que se diga que este é um filme banhado por uma sensualidade cristã? O filme coloca a questão da impossibilidade da representação da imagem de Cristo, e assim refere-se-lhe através da palavra, de como a sua palavra e a sua ação podem hoje dar algum sentido às decisões de vida de personagens concretas. Se quisermos ver nessas personagens alguma inspiração "cristã", será simplesmente na acessão que essa palavra tinha originalmente, quando foi inventada pelos romanos para designar estranheza em relação a grupos marginais que seguiam uma forma radical de desobediência civil e de não violência, e que davam a vida por essa escolha..Como chegaram a esta estrutura de três partes e quase 11 horas de duração? Dito de outro modo: como definiriam o vosso espetador ideal? O filme foi feito não a partir de conceitos e de um plano pré-definido, mas num processo contínuo de criação, com olhos e ouvidos abertos para a realidade em mutação em que estamos inseridos. Abraçando claramente a opção de "colagem", tão ligada ao conceito de "citação" e de montagem. Dando um exemplo grosseiro, a "colagem", com origens na Idade Média, foi central no desenvolvimento da modernidade, quer nas artes plásticas, quer na literatura e no cinema. Hoje, com o Photoshop, os filtros digitais e a imagem em 3D, as descontinuidades são apagadas, a maioria das produções cinematográficas tornaram-se grandes bolos de noiva artificialmente adocicados e decorados, não muito diferentes de "deep-fakes"..A estrutura em três partes surgiu naturalmente quando começámos a organizar muito do material filmado, e assim as linhas gerais da montagem ficaram concluídas um ano antes do filme terminado. Deixámos a negro as sequências ainda a filmar, na sua maioria com os tempos e banda sonora já definidos. A última foi concluída pouco antes da primeira apresentação do filme no Festival de Locarno..Atualmente há uma competição desenfreada nas redes sociais, na procura de atenção, espetadores e atenção ilimitada para as imagens e declarações dos vários "eus". Não procuramos transmitir ideias próprias, não é essa a "graça" da arte. Absorvemos ideias que nos rodeiam, estabelecendo ligações e esperando que circulem livremente no processo criativo..Pathos Ethos Logos não tem fronteiras temáticas, de linguagens ou géneros cinematográficos. Em tempos de super-heróis e "Big Brother" televisivo, podemos interpretar as vossas escolhas como uma declaração de princípios sobre o futuro do próprio cinema? Refletimos sobre a sua questão, e de facto a declaração de princípios sobre o futuro do cinema já foi feita, talvez de forma obtusa, mas eficaz, por alguém que nos foi próximo. O João César Monteiro, no filme Branca de Neve (que poucos foram ver), ao colocar o casaco sobre a câmara e dizer: "ação!", provou que ninguém vai ao cinema por uma história, por mais bem contada que seja. Vão porque necessitam de ser alimentados constantemente com estímulos visuais, dependentes e vivendo sob o efeito alucinogénio de um excesso de luz. Não sabemos qual será o futuro do cinema, não dizemos acreditar no cinema como quem diz que acredita em Deus. Gostamos de filmar quando tal se justifica e gostamos de alguns filmes..Ao investigarmos sobre as guerras ao longo da história, ao lermos por exemplo a imprensa portuguesa, alemã ou britânica durante a II Guerra Mundial, ficámos surpreendidos pela enorme quantidade de artigos sobre banalidades, sobre estrelas de cinema, sobre as últimas modas de vestuário e de cosméticos. Sobre a banalidade que acompanhou as maiores atrocidades. Não estamos longe, vivemos da mesma forma noutros tempos. Isso, sim, parece-nos absurdo..A par da vibração trágica, o vosso trabalho não exclui diversas pontuações de ironia e humor - podemos considerar que fazer filmes continua a ser uma forma de não desistir da felicidade como utopia? O humor, a ironia e a autoironia, que dependem muito das referências de cada espetador, são certamente positivas quando contribuem para expor contradições e motivam reflexão. Pelo contrário, quando são formas de rebaixar quem não tem capacidade para responder, são instrumentos de opressão. Por exemplo, no nosso filme, a personagem de Rafaela - que Rafaela Jacinto ajudou a moldar, no seu excesso e exagero, lembrou-nos várias vezes um tal João de Deus - é simultaneamente trágica e cómica. Esse humor excessivo está presente mesmo em Cristo, apresentado quase sempre como alguém que não ria: "Porque reparas no argueiro que está na vista do teu irmão, e não vês a trave que está na tua vista?" (Mateus 7:1-5)..Não propomos a felicidade como utopia, o que caracteriza a utopia é precisamente não ser realizável. Talvez possa haver momentos de felicidade, mas tal como o humor, dependem das circunstâncias. Felicidade é o nome da escrava que Perpétua liberta - morrem na arena como iguais. O narrador que fecha o diário de Perpétua descreve assim a última refeição delas, na véspera do martírio: "Falavam à turba (...), afirmando a felicidade de sua Paixão, divertindo-se com a curiosidade deles". A nossa interrogação é mais simples: como viver e filmar sem desviar a atenção do sofrimento, sem cair no escapismo..dnot@dn.pt