Algo "perdido" na abundância da oferta das plataformas de streaming, eis um pequeno grande filme que vale a pena descobrir: Camille (2019) é uma realização de Boris Lojkine sobre Camille Lepage, repórter fotográfica assassinada na República Centro-Africana, a 12 de maio de 2014, contava 26 anos..Estamos perante uma lógica dramática mais ou menos tradicional. Por um lado, Lojkine procurou um máximo de realismo, tendo mesmo rodado o filme na zona de Bangui, capital do país africano que Lepage fotografou durante uma guerra civil pontuada por muitos episódios de inusitada violência; por outro lado, o efeito realista intensifica-se através da integração de atores locais que viveram os acontecimentos narrados e até de um fotojornalista, Michaël Zumstein, que interpreta o seu próprio papel..Em qualquer caso, não se poderá definir Camille como um mero exercício de "reconstituição". Aliás, a palavra envolve um irremediável equívoco porque em cinema nunca se reconstrói o que quer que seja: mesmo procurando algum tipo de fidelidade a lugares, pessoas e ações, o que se fabrica é sempre uma nova narrativa..O filme de Lojkine surpreende pela capacidade de expor aquilo que é, para todos os efeitos, a construção de um olhar. Dito de outro modo: observamos as subtis transformações da visão humanista de Lepage através da progressiva revelação de uma realidade em que se cruzam o fascínio da descoberta das singularidades de um povo e o confronto com os horrores da guerra..YouTubeyoutubehv6zqNrZm0M.Importa, por isso, sublinhar a sóbria utilização das fotografias (admiráveis!) da própria Lepage no interior do filme. Evitando o efeito fácil de fingir que as suas cenas são uma "reprodução" dessas fotografias, Lojkine vai utilizando as imagens de 2013-14 como uma subtil pontuação narrativa: compreendemos que Lepage se envolveu, de facto, com a complexidade humana de uma atribulada conjuntura política, ao mesmo tempo que sentimos que qualquer imagem, involuntariamente, corre o risco de gerar uma abstração simbólica que nos afasta da crueza dos factos vividos..O filme acaba mesmo por contrariar um cliché "épico" que, infelizmente, está presente no nosso quotidiano mediático. Nele, e através dele, acaba por se tratar o jornalista (fotógrafo ou não) que se confronta com uma situação de guerra como o "herói" do seu próprio trabalho. Nada disso está presente neste caso, até porque a composição de Nina Meurisse na personagem central é um caso invulgar de sensibilidade: ela consegue essa proeza, sempre dramaticamente difícil, de nos fazer sentir as especificidades da fotografia sem a reduzir a um estereótipo profissional, ainda menos moral - deparamos com um ser vivo movido, afinal, por um obstinado desejo de conhecer..Camille vem inscrever-se, assim, no património multifacetado das relações entre cinema e jornalismo. Exemplo (e sugestão) que vale a pena evocar: The Killing Fields/Terra Sangrenta (1984), de Roland Joffé, sobre a ditadura dos Khmers Vermelhos no Camboja.