O mashup de Raul Brandão de A Pedra Sonhar Dar Flor encontrou na Ria de Aveiro o seu cenário para esta adaptação de Rodrigo Areias. O cineasta vimaranense mostrou ao DN os locais onde filmou este drama intemporal, um Portugal do passado que é tão deste presente. Nesta espécie de retro-repérage trouxe Nuno Preto, o seu protagonista, figura de A Morte do Palhaço, uma das personagens com toda a tragédia da literatura de Brandão..Como bom cicerone, o realizador leva-nos para um dos locais marcantes do filme, o bar de prostitutas Húmus, afinal, uma casa no meio da ria. Água em redor e uma profundidade de horizonte sem fim. Neste dia quente de agosto sente-se que Areias e Preto olham para estes locais com uma distância de tempo perene. O filme já foi rodado há uns tempos, as filmagens coincidiram com a chegada da pandemia… “Há mesmo essa sensação de terra de ninguém! Vemos essas casas de ilhas nesta parte da ria selvagem e percebemos que, par muitas delas, o acesso é só possível de barco. Foram casas que se foram construindo no meio da ria. A ideia de fazer o filme aqui era remeter para essa relação com a água, uma relação entre o lado físico, através do Cais da Rainha, em Ovar, que obriga as pessoas a saírem à noite no barco a remos para chegar aos sítios que aqui vemos na Ria de Aveiro. Há ilhotas cujas casas estão mesmo muito no interior da ria… São locais completamente remotos, só alcançáveis via barco. Este lado natural deste décor é absolutamente fenomenal e é pouquíssimo explorado no nosso cinema. Adoro estas discrições e há aqui um lado importante nas descrições de Raul Brandão em Os Pescadores, aspeto que é especificamente daqui e de Ovar. No fundo, é sobre a relação destas pessoas com água… A agua influencia mesmo a forma de estar”, começa por dizer Areias..Um apelo especial de um local que contagia.Os cicerones desta viagem de recordações de uma rodagem dura mas feliz...Maria João Gala / Global Imagens.Andamos um pouco mais à frente e água parece cercar-nos por todo o lado. À esquerda está um dos outros lugares que serviu como cenário. Há toda uma atmosfera de abandono, de perda: “Gosto realmente muito deste local, estas casas perdidas, as estruturas metálicas, os portos… É uma beleza diferente. Estamos precisamente no dique principal do filme e à esquerda a árvore onde sucede um enforcamento”, lembra o cineasta. Por muito que o argumento desenvolvido também com Pedro Bastos e Eduardo Brito misture várias obras de Brandão, sente-se uma unidade de como toda aquela comunidade fosse única e inseparável, coisa que Areias explica através de um tema recorrente do escritor: “o que ele fazia era escrever sobre a miséria e a pobreza de um país num determinado tempo. Um país que não tinha para onde ir, descrito de forma pouco esperançosa. Trata-se de um fatalismo hiper violento! E quis fazer um cinema não de entretenimento mas de confronto com uma obra e um contexto literário que não deixa de ser uma arte maior. Claro que a ideia era precisamente não desvirtuar a palavra, pegar ‘naquilo’ com coragem, sem querer fazer um blockbuster de natal”..A Ria continua em Ovar.Foi aqui que a produtora Bando à Parte trouxe a aura circense do filme para um ritual carnavalesco de Ovar...Maria João Gala / Global Imagens.A escolha de Ovar, mais afastada da boca da Ria de Aveiro, era para conferir outras soluções à produção e ir ainda para o interior mais profundo da ria, com oscilações da maré bem mais violentas, canais mais estreitos e uma dificuldade em navegar maior. Nuno Preto, o ator protagonista, teve de dar ao remo bastantes vezes: “devo dizer que toda a minha interpretação dependeu do equilíbrio que dei ao barco a remar”, começa por dizer a brincar e prossegue: “a minha personagem tem aquela duplicidade, mas, na verdade, está lá Raul Brandão e é isso que pontua a minha abordagem. Foi um trabalho interior próximo da miséria. Entre nós tínhamos uma aposta interna em encontrar uma passagem no guião que não estivessem escritas as palavras miséria, quimera ou morte. Mas dependeu tudo de um processo mais imersivo. Foi por isso que o meu primeiro processo foi de emagrecimento para encontrar uma imagem que refletisse esse desencanto e miséria. Uma imagem e um certo andar”..As marcas de um processo.Depois, quer o ator, quer o realizador falam de um espírito de cumplicidade verdadeira entre os atores e equipa: “mas é claro que um processo destes deixa marcas. Por exemplo, acabei uma relação nessa altura. Este era um trabalho de interpretação com um grande arco. Foi um ano muito especial, não só devido à pandemia mas porque também vim da rodagem de Não Sou Nada, enfim… Fernando Pessoa! E de Pessoa passo para Brandão! Mais à frente ainda fui até à Agustina em A Sibila e um espetáculo de teatro, já para não falar que se seguiu Torga com a série Histórias da Montanha. Num ano e meio corri todos os trágicos”.Por entre esta paisagem forte e já por si dramática, sente-se falta da música e dos cânticos do filme. A dimensão musical é das coisas mais vitais da obra de Rodrigo Areias. Nesse sentido, a música de Dada Garbeck é um coro que nos estampa o desespero destes portugueses tristes e sós. Música chorada que é consolo nestas paisagens húmidas. Se é verdade que o filme chega aos cinemas já depois de amanhã, em certos locais pode ser visto com Garbeck a tocar ao vivo no modelo de cineconcerto. De cabeça, a mostrar que é produtor que não cochila, Rodrigo Areias dá-nos as datas e os locais. Importante encarar esta opção: quinta-feira no Trindade, no Porto; sexta em Lisboa, no Nimas e sábado no Centro de Arte, em Ovar, seguindo-se Guimarães no domingo no Vila Flor, dia 21 na Casa do Cinema, em Coimbra e dia 10 no Festival CinEco de Seia..Areias a falar como produtor.Ainda por Ovar, Areias, de novo na capa de produtor, fala de como por virtude da covid, houve a necessidade de levar o que A Morte do Palhaço pedia de circo para uma cidade de Carnaval, ou seja, para exteriores: “aí tivemos a ajudada da autarquia e é por isso que decidimos rodar as cenas da morte do palhaço num momento apoteótico, cheio de gente, mas mantendo todo o lado enigmático, sendo que a lógica passou a ser exterior”. Dir-se-ia que o cinema improvisa da literatura soluções que soam a divina providência… Trata-se de um grande momento de cinema!