Um festival de cinema pode ser muita coisa. A 19ª edição do Festival de Cinema de Marraquexe quer ser tudo: um evento de prestígio, uma festa de cinema com galas de tapete vermelho, um foco ao novo cinema do Magrebe, um sistema educativo para o povo, um certame de encontros e uma dádiva à cidade com sessões vibrantes ao ar livre na Praça Jemaa el-Fna..Ambição a mais? Quem vir o copo meio-cheio refastela-se com isso e celebra, sobretudo quando em Jemaa el-Fna se sente uma ebulição que o cinema de todas as latitudes pode causar. Nas noites em que espreitei uma das sessões gratuitas diárias, um exemplo de cinema árabe contrastava com o cheiro das espetadas nas tendas dos comes e bebes na maior praça da cidade. O cinema adapta-se ao espírito de um lugar onde o comércio e o turismo pitoresco parecem tomar conta de tudo, embora nesse mesmo dia, no belo e avermelhado Coliseu, já fora da Medina, Les Harkis, de Philipe Faucon, era aplaudido por ser uma denúncia à forma como a França deixou desamparados os milhares de argelinos que lutaram ao seu lado contra o seu povo. Uma sessão com a presença de Faucon e onde era possível perceber como os jovens marroquinos veem cinema de telemóvel na mão, muitas vezes a filmar momentos ou a fotografar sequências do filme. Sim, há uma espécie de caos nessas projeções públicas..A sessão de abertura foi marcada pelas ausências inesperadas de dois elementos do júri presidido por Paolo Sorrentino. A estrela de Hollywood Oscar Isaac e a realizadora dinamarquesa Suzanne Bier não apareceram à última da hora. Um embaraço que a organização não quis explicar com clareza, mas a verdade é que nos jurados havia talento de sobra: de Diane Kruger a Tahar Rahim, passando ainda por Vanessa Kirby, a atriz da série The Crown e recentemente nomeada ao Óscar por Pieces of a Woman. E é óbvio que quem ama cinema perdoou tudo com o filme de abertura, o belo Pinóquio, de Guillermo Del Toro e Mark Gustavson, uma animação em stop-motion que reinventa o conto de Carlo Collodi. Trata-se de uma variação negra sobre o fundamento espiritual do menino de madeira, um boneco que representa a irreverência numa Itália esmagada pelo surgimento do fascismo de Mussolini, aqui um vilão tão opressivo como ridículo. Del Toro convoca os seus monstros belos e assustadores para filmar a desobediência política e o gesto da infância. Um objeto de arte que nos põe a sonhar com uma ideia de morte e de perda, mas que nos deixa apaziguados sobre a passagem do tempo. É produção Netflix mas em Portugal estreia-se já para a semana nos cinemas..Para lá dos filmes, num contigente de uma competição que sabiamente misturou cinema europeu com africano e árabe, o melhor deste arranque do festival foram os encontros e as masterclasses. A cineasta vencedora de Cannes 2021 com Titane, Julie Ducournau, desfilou charme e falou com os jovens estudantes de cinema marroquinos. Ao DN revelou que Nuno Lopes será Balenciaga em The New Look, série que filmou para a Apple TV +, um relato sobre a disputa do trono da moda entre Coco Chanel e Christian Dior: "demoro sempre muito a concluir uma longa-metragem e, por isso, adoro estar num plateau para me colocar à prova e não estar parada. Já tinha realizado também para a série do M. Night Shyamalan, o The Servant. Mas este verão adorei filmar The New Look, ainda que infelizmente não tenha apanhado o Nuno Lopes. Foi outra pessoa a gravar os episódios onde ele aparece". Não é brincadeira, Nuno Lopes ao lado de John Malkovich, Juliette Binoche e Ben Mendelsohn num evento televisivo ....Comovente no mínimo a "talk" de Leos Carax, provavelmente o mais reclusivo dos cineastas de culto francês, regressado o ano passado com o potente Annette. No Palácio dos Congressos de Marraquexe o cineasta de Má Raça falou sobre a sua arte e passou em revista toda a sua obra, evitando mostrar imagens de Pola X, com os falecidos e imortais Yakaterina Golubeva e Guillaume Depardieu. "O espetador é uma coisa abstrata, às vezes vem, outras não. Aliás, o cineasta também é um espetador. Creio que é muito raro um grande cineasta poder ter um público grande, Charlie Chaplin e Hitchcock são exceções. Sei que consegui fazer o Annette porque o anterior, Holly Motors, teve público"....São palavras ditas com uma relutância que mistura modéstia e vulnerabilidade, os antípodas do veterano cada vez mais jovem Jim Jarmuch, recebido em triunfo pelos estudantes marroquinos numa masterclasse na qual falou sobretudo sobre a sua insaciável fome de vida, viagens e música. Foi a talk que sintetiza o espírito destes encontros: acessibilidade e glória aos autores. O cineasta-músico não desvendou nada do seu próximo Ghost Dog 2, mas disse coisas como "muito do meu trabalho é ser antena, absorver tudo. Sabem que mais? A originalidade está sobrevalorizada". E falou com amor de amigos como Neil Young, Tilda Swinton (por estes dias a chegar ao festival ), Iggy Pop ou Patti Smith. Acabou em apoteose a elogiar outra cidade de Marrocos, Tanger, local onde rodou o memorável Só os Amantes Sobrevivem: "já disse à minha família: um dia sou capaz de fingir que morri e mudo-me é para Tanger"..dnot@dn.pt