O lançamento de um novo filme de Clint Eastwood - Juror #2 (à letra: Jurado nº 2) - constitui, por si só, um acontecimento. Infelizmente, desta vez, antes mesmo de celebrarmos o filme, não parece possível descartarmos as bizarras condições do seu lançamento. A saber: a partir de hoje, Juror #2 está disponível na plataforma Max, sem ter passado pelas salas de cinema..Enfim, não sejamos fundamentalistas. Já não existe nenhum mercado tradicional com um número de salas capaz de acolher a quantidade imensa de novas produções que o streaming passou a disponibilizar - para o melhor e para o pior, apetece dizer. Ainda assim, mesmo não esquecendo a oferta alargada das plataformas, é do senso comum reconhecer que a verdade primordial do cinema está nas salas escuras - é nesses lugares que os filmes encontram o máximo de intensidade visual e sonora, cumprindo o essencial da sua partilha social..É também verdade que, nos últimos anos, temos descoberto alguns títulos realmente excecionais através do streaming - dir-se-ia que, a par de O Irlandês, de Martin Scorsese (lançado na Netflix, em 2019), Juror #2 é mais um objeto “dispensado” da sagração nas salas. E há uma pergunta que emerge: que faz com que um nome com a carga de prestígio e, sobretudo, a dimensão popular de Eastwood já não seja reconhecido como digno de estar presente nas salas? Que leva a Warner Bros. a minimizar assim o nome de Eastwood (com quem o estúdio mantém uma relação de trabalho há mais de meio século), a ponto de, até mesmo nos EUA, onde os grandes lançamentos acontecem em vários milhares de ecrãs, o filme ter tido apenas uma discreta passagem por cinco dezenas de salas?.Não será possível renovar o cinismo cultural que gosta de culpar os meios de comunicação (e, em particular, os críticos de cinema) de todos os desequilíbrios estruturais do mercado. Aliás, as coisas complicam-se um pouco mais quando observamos a conjuntura portuguesa. Assim, é um facto que as salas do nosso país não são as únicas a não receber o filme - aconteceu o mesmo, por exemplo, no México, Brasil e Suécia. Mas é também um facto que Juror #2 foi lançado nos cinemas do Reino Unido e França com resultados financeiros francamente interessantes - nas salas francesas, as receitas já ultrapassaram um milhão e meio de euros..Inocência e culpa.Clint Eastwood e Toni Collette no cenário do tribunal de Juror #2..A marginalização de Juror #2 parece reflectir uma opção de alguns decisores da grande indústria (com inequívocos reflexos no funcionamento de pequenos mercados como o português), secundarizando tudo aquilo que não “encaixe” nas regras do infantilismo primário que continua a dominar várias áreas da produção dos grandes estúdios. Daí a situação chocante: a indiferença que tudo isto envolve menospreza até o potencial valor comercial dos filmes. Com detalhes grotescos: na página do filme, na Max, além de não haver tradução do título, o nome de Clint Eastwood nem sequer é citado (situação que se mantinha na manhã de quinta-feira, quando este texto foi concluído)..Quem tem medo de um grande filme adulto? Porque é isso mesmo que importa valorizar: sem super-heróis aos gritos nem planetas a explodir, Juror #2 começa por ser um clássico filme de tribunal, reinventando um género que possui uma referência tutelar no lendário Doze Homens em Fúria (1957), longa-metragem de estreia de Sidney Lumet, com Henry Fonda, centrada nas discussões dos jurados que analisam um crime cometido em Nova Iorque..Juror #2 tem como figura central Justin Kemp (Nicholas Hoult), um cidadão relativamente jovem da cidade de Savannah, no estado da Georgia, cuja mulher está na fase final de uma gravidez; uma noite de chuva, ao regressar a casa, sente que o seu carro bateu em alguma coisa, talvez um veado a atravessar a estrada... Não consegue perceber o que aconteceu e acaba por seguir viagem. Mais tarde, assumindo as suas obrigações cívicas, integra um júri que está a julgar um homem acusado de ter atropelado fatalmente uma jovem, abandonando o local da ocorrência, na mesma zona da estrada em que Justin julga ter atingido um animal. Intrigado, cada vez mais perturbado, Justin vê-se confrontado com um puzzle de coincidências; ou como ele confessa a uma pessoa da sua confiança: “talvez não tenha batido num veado”....O esquematismo desta sinopse está muito longe de poder sugerir a complexidade daquilo que está em jogo. Isto porque Juror #2 não é um enigma policial à maneira de Agatha Christie, com sinais e provas que se vão acumulando para desembocar numa solução final redentora. Se necessitamos de uma referência cinéfila (que o próprio Eastwood talvez não enjeite), poderemos dizer que, para lá das muitas diferenças de narrativa e estilo, deparamos aqui com uma fundamental componente “hitchcockiana”: a instabilidade factual e moral que pode contaminar a fronteira entre inocência e culpa..Mais do que isso: à maneira da maior parte dos filmes de Alfred Hitchcock (1899-1980), a explicitação dos factos, que por vezes se confunde com a identificação de um culpado, acontece muito antes do final. A tensão dramática nasce, não apenas do que sabemos ou não sabemos, mas sobretudo das diferenças de perceção e conhecimento das personagens - e também do modo como essas diferenças contaminam e desafiam o olhar do espectador..Evitemos colar a Eastwood o rótulo mediático de sacerdote do Bem e do Mal, fenómeno hoje em dia alimentado por muitas linguagens televisivas (em particular nos domínios da política e do futebol). Não que o seu cinema seja estranho, longe disso, às dinâmicas morais que regem cada sociedade. Aliás, podemos mesmo considerar que ele se assume, no sentido mais primitivo do termo, como um moralista. Entenda-se: não como alguém que, do alto da sua cátedra, tenta impor a sua “moralidade” aos outros; antes como um observador obsessivo, minucioso e disciplinado que questiona os mecanismos coletivos que, melhor ou pior, geram valores (morais, justamente) talhados para sustentar a coerência e a consistência de uma determinada comunidade..A Lei e a Ordem.Rawhide (1959-1965): nos tempos de vedeta televisiva..Ao contrário do que acontece com os clichés da ideologia politicamente correta que está a afoguear todas as manifestações artísticas (nos EUA, sem dúvida, e também cada vez mais em Portugal), a teia dramática de Juror #2 não existe como um sermão moralista para apaziguar as boas consciências. Se todos os elementos aqui citados desenham um acontecimento que nos toca, envolve e questiona, isso resulta do facto de não serem ideias abstratas, muito menos diatribes panfletárias - são sempre ideias de cinema..Eastwood é um herdeiro legítimo dos grandes mestres clássicos de Hollywood e, em particular, dos que encenaram e discutiram as convulsões labirínticas da Lei e da Ordem. Além do já citado Hitchcock, podemos lembrar exemplos modelares como Fritz Lang (1890-1976) ou Otto Preminger (1905-1986) - com um dado curioso a reter: os três nasceram na Europa..Juror #2 é mais um prodigioso exemplo de um trabalho apostado em cruzar a vibração realista com uma dramaturgia sempre atenta e, mais do que isso, fascinada pelas vivências mais secretas (morais, precisamente) de cada figura individual. Quanto ao rigor realista, envolvendo a verdade dos corpos e os detalhes dos cenários, Eastwood continua a trabalhar com notáveis diretores de fotografia - desta vez, as imagens são da responsablidade do canadiano Yves Bélanger, veterano com uma filmografia que inclui uma enorme diversidade de trabalhos para cinema (em 2018, iniciou a sua colaboração com Eastwood, em Correio de Droga) e televisão (fotografou, em 2017, a primeira temporada da série Big Little Lies, com Nicole Kidman e Reese Witherspoon)..Sem esquecer, claro, que nada disto é estranho ao misto de precisão e prazer com que Eastwood tem sabido dirigir a longa lista dos seus intérpretes - no caso de Juror #2, para lá do brilhante Nicholas Hoult, destacam-se as presenças de secundários como Toni Collette, J. K. Simmons e Kiefer Sutherland..Imperdoável (1992): o filme dos primeiros Óscares..Nascido em São Francisco, em 1930, Eastwood surgiu na mitologia cinematográfica como representante de um modelo de herói dos westerns clássicos que, afinal, começou na televisão com a série Rawhide (participou em mais de duas centenas de episódios, entre 1959 e 1965). Com alguma ironia, a sua consagração como estrela internacional passou pela trilogia rodada em Itália sob a direção de Sergio Leone - Por um Punhado de Dólares (1964), Por Mais Alguns Dólares (1965) e O Bom, O Mau e o Vilão (1966) -, abrindo diversos caminhos para uma reconversão temática e estética do western que, com naturalidade, viria a marcar a sua própria trajetória como ator/realizador..Quando foi pela primeira vez distinguido nos Óscares - com Imperdoável, melhor filme e melhor realização de 1992 -, Eastwood emergiu como um autor apostado em rever a herança dos westerns clássicos, relançando uma pergunta transversal a toda a sua obra: que significa ser (ou não ser) americano? Juror #2 é mais um admirável capítulo dessa introspeção individual e coletiva e também uma das estreias fulcrais do ano de 2024 - tristemente, entre nós, foi-lhe recusada a nobreza do grande ecrã.