Kes (1969), uma das preciosidades dos primeiros dias da retrospetiva
Kes (1969), uma das preciosidades dos primeiros dias da retrospetivaD.R.

Celebrar Ken Loach na hora da despedida

O Batalha Centro de Cinema, no Porto, propõe uma retrospetiva da obra do realizador britânico que anunciou o fim da carreira aos 87 anos. A partir deste sábado, até 20 de novembro, o realismo social de Ken Loach vai encher e partir corações.
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Resistência. Eis a palavra escolhida para homenagear Ken Loachcineasta que desde os anos 1960 inscreveu no cinema britânico uma inquietação política. “Planos de Resistência”. É esse o título da retrospetiva que o Batalha Centro de Cinema dedica agora ao mais firme e constante dos olhares, empenhado em fazer de cada filme uma arma expressiva, um meio para chegar às consciências, ou simplesmente expor realidades sociais vulneráveis. Pouco depois de ter anunciado a reforma, aos 87 anos, e com uma carreira que se estende por seis décadas, Loach poderá ser revisitado ou (re)descoberto, a partir de amanhã, na sala portuense, através de um programa com quase duas dezenas de títulos, curadoria de Gareth Evans, que percorrem uma filmografia comprometida com o seu tempo. 

Se quisermos contextualizar um pouco, o cinema de Ken Loach sempre se pautou pela vontade de mostrar como vai o mundo – o mundo visto a partir do Reino Unido, com alguns exemplos da Irlanda –, acrescentando à camada realista uma pincelada humanista. Porque, no fundo, foi sempre em nós espectadores que esteve a sua crença; o importante era aproximar a nossa sensibilidade dos problemas dos outros, ou vice-versa, tornar esses problemas legíveis através de situações que envergonhariam qualquer poder político. E aí está o “ativismo” do realizador que passou a vida a colocar a lente sobre a desfavorecida classe trabalhadora, ou sobre comunidades com histórias que merecem ser contadas, como aquela que inspirou o seu último filme, O Pub The Old Oak, em torno de uma pequena cidade britânica com um historial mineiro, que em 2016 lidou mal com a chegada de refugiados sírios. Uma hostilidade transformada por Loach, e o seu argumentista Paul Laverty, em esperança. Quase a assumir, com modéstia, que um filme pode mudar o mundo.  

De resto, esta não é a primeira vez que o realizador veterano lança a questão do fim da carreira, à semelhança de Hayao Miyazaki: em 2014, depois de O Salão de Jimmy, andou no ar essa possibilidade, que veio a ser alterada pela vitória dos conservadores nas eleições inglesas... Loach sentiu-se impelido a reagir com um novo filme, e o resultado foi uma segunda Palma de Ouro, Eu, Daniel Blake (a primeira tinha sido com Brisa de Mudança, em 2006), que reacendeu a chama do realismo social deste cinema, cuja urgência se perdera um pouco no anterior O Salão de Jimmy, como aconteceu quase sempre com os seus dramas de época. A verdade é que o brilho loachiano é indissociável do tremor do presente, ou de um desígnio, como o próprio lhe chama, de “dramaturgia contemporânea”. Por isso, os seus melhores filmes são aqueles em que se sente a tenacidade dos motivos sociais hodiernos. 

Cathy Come Home (1966), quando Loach já era Loach.

Na altura em que Eu, Daniel Blake chegou às salas portuguesas, em 2017, houve mesmo um “regresso” a Ken Loach, através de um ciclo na Cinemateca e um documentário (Versus: A Vida e os Filmes de Ken Loach, de Louise Osmond), que ajudaram a renovar as noções à volta da sua obra. 

O realismo social acima de tudo

A retrospetiva que começa este sábado no Batalha, prolongando-se até 20 de novembro, vem então redobrar as anteriores abordagens, ao percorrer grande parte da filmografia de Loach, numa dimensão capaz de reproduzir a tal ideia de resistência. Logo a abrir, Poor Cow (amanhã, 21h15, e dia 22, 15h15), a sua primeira longa-metragem, de 1967, é um filme que se afasta dos Swinging Sixties para dar uma imagem da Londres operária, centrando-se numa jovem, Joy (Carol White), que quebra qualquer visão romântica ao fazer uma crónica de más escolhas amorosas, pais negligentes e pobreza, em jeito de sinalização dos temas que se tornaram recorrentes em Loach. 

Logo depois vem Kes (dia 19, 17h15, e 6 de junho, 19h15), um vívido e comovente retrato de um rapaz solitário de South Yorkshire que se afeiçoa a um falcão, descobrindo na tentativa de o amestrar um sentido para os seus dias. É um dos filmes mais belos do cineasta, mas também um dos comentários mais frontais ao sistema educativo britânico no pós-guerra, com o corpo frágil do pequeno David Bradley (vencedor de um BAFTA) a concentrar toda a angústia comunitária. 

Nestes primeiros dias da retrospetiva, para além da comédia que fez com Eric Cantona (Looking for Eric2009) e de um drama sobre um músico e dissidente político, dividido entre o exílio da RDA e a busca pelo pai (Fatherland, 1986), ver-se-ão ainda provas fortes dos primórdios da carreira de Loach na BBC. Com efeito, Up the Junction (dia 26, 17h15), Cathy Come Home (dias 2 e 5 de junho) e The Big Flame (21 de junho) são todos eles episódios de uma série, The Wednesday Play (1965-69), que pôs o então jovem realizador no mapa, sobretudo com o polémico Cathy Come Home, história de uma mulher, de novo interpretada por Carol White, arrastada numa corrente de crises provocadas pelo sistema – desde o desemprego à habitação – que culmina no momento dilacerante em que a assistência social lhe tira os filhos dos braços. 

O episódio de Cathy Come Home foi tão chocante para os espectadores, pela linguagem vincada, a meio caminho entre o documentário e o teatro (bem diferente do estilo de docudrama de outros realizadores da mesma série), que houve quem escrevesse cartas à BBC a perguntar se o que tinha visto se tratava de ficção ou realidade... Não será este o melhor exemplo do poder de um filme de Ken Loach? Pleno de urgência e vigor de contemporaneidade, a ensaiar o humanismo em quem vê.  

Até novembro, vão passar pelo Batalha outros títulos marcantes, como Agenda Secreta (1990), Ladybird, Ladybird (1994) ou o referido Brisa de Mudança, sem esquecer o trio final da sua obra: Eu, Daniel BlakePassámos por Cá O Pub the Old Oak. É hora de celebrar um cineasta da velha guarda, eternamente atual. 

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