Resistência. Eis a palavra escolhida para homenagear Ken Loach, cineasta que desde os anos 1960 inscreveu no cinema britânico uma inquietação política. “Planos de Resistência”. É esse o título da retrospetiva que o Batalha Centro de Cinema dedica agora ao mais firme e constante dos olhares, empenhado em fazer de cada filme uma arma expressiva, um meio para chegar às consciências, ou simplesmente expor realidades sociais vulneráveis. Pouco depois de ter anunciado a reforma, aos 87 anos, e com uma carreira que se estende por seis décadas, Loach poderá ser revisitado ou (re)descoberto, a partir de amanhã, na sala portuense, através de um programa com quase duas dezenas de títulos, curadoria de Gareth Evans, que percorrem uma filmografia comprometida com o seu tempo. .Se quisermos contextualizar um pouco, o cinema de Ken Loach sempre se pautou pela vontade de mostrar como vai o mundo – o mundo visto a partir do Reino Unido, com alguns exemplos da Irlanda –, acrescentando à camada realista uma pincelada humanista. Porque, no fundo, foi sempre em nós espectadores que esteve a sua crença; o importante era aproximar a nossa sensibilidade dos problemas dos outros, ou vice-versa, tornar esses problemas legíveis através de situações que envergonhariam qualquer poder político. E aí está o “ativismo” do realizador que passou a vida a colocar a lente sobre a desfavorecida classe trabalhadora, ou sobre comunidades com histórias que merecem ser contadas, como aquela que inspirou o seu último filme, O Pub The Old Oak, em torno de uma pequena cidade britânica com um historial mineiro, que em 2016 lidou mal com a chegada de refugiados sírios. Uma hostilidade transformada por Loach, e o seu argumentista Paul Laverty, em esperança. Quase a assumir, com modéstia, que um filme pode mudar o mundo. .De resto, esta não é a primeira vez que o realizador veterano lança a questão do fim da carreira, à semelhança de Hayao Miyazaki: em 2014, depois de O Salão de Jimmy, andou no ar essa possibilidade, que veio a ser alterada pela vitória dos conservadores nas eleições inglesas... Loach sentiu-se impelido a reagir com um novo filme, e o resultado foi uma segunda Palma de Ouro, Eu, Daniel Blake (a primeira tinha sido com Brisa de Mudança, em 2006), que reacendeu a chama do realismo social deste cinema, cuja urgência se perdera um pouco no anterior O Salão de Jimmy, como aconteceu quase sempre com os seus dramas de época. A verdade é que o brilho loachiano é indissociável do tremor do presente, ou de um desígnio, como o próprio lhe chama, de “dramaturgia contemporânea”. Por isso, os seus melhores filmes são aqueles em que se sente a tenacidade dos motivos sociais hodiernos. .Cathy Come Home (1966), quando Loach já era Loach..Na altura em que Eu, Daniel Blake chegou às salas portuguesas, em 2017, houve mesmo um “regresso” a Ken Loach, através de um ciclo na Cinemateca e um documentário (Versus: A Vida e os Filmes de Ken Loach, de Louise Osmond), que ajudaram a renovar as noções à volta da sua obra. .O realismo social acima de tudo.A retrospetiva que começa este sábado no Batalha, prolongando-se até 20 de novembro, vem então redobrar as anteriores abordagens, ao percorrer grande parte da filmografia de Loach, numa dimensão capaz de reproduzir a tal ideia de resistência. Logo a abrir, Poor Cow (amanhã, 21h15, e dia 22, 15h15), a sua primeira longa-metragem, de 1967, é um filme que se afasta dos Swinging Sixties para dar uma imagem da Londres operária, centrando-se numa jovem, Joy (Carol White), que quebra qualquer visão romântica ao fazer uma crónica de más escolhas amorosas, pais negligentes e pobreza, em jeito de sinalização dos temas que se tornaram recorrentes em Loach. .Logo depois vem Kes (dia 19, 17h15, e 6 de junho, 19h15), um vívido e comovente retrato de um rapaz solitário de South Yorkshire que se afeiçoa a um falcão, descobrindo na tentativa de o amestrar um sentido para os seus dias. É um dos filmes mais belos do cineasta, mas também um dos comentários mais frontais ao sistema educativo britânico no pós-guerra, com o corpo frágil do pequeno David Bradley (vencedor de um BAFTA) a concentrar toda a angústia comunitária. .Nestes primeiros dias da retrospetiva, para além da comédia que fez com Eric Cantona (Looking for Eric, 2009) e de um drama sobre um músico e dissidente político, dividido entre o exílio da RDA e a busca pelo pai (Fatherland, 1986), ver-se-ão ainda provas fortes dos primórdios da carreira de Loach na BBC. Com efeito, Up the Junction (dia 26, 17h15), Cathy Come Home (dias 2 e 5 de junho) e The Big Flame (21 de junho) são todos eles episódios de uma série, The Wednesday Play (1965-69), que pôs o então jovem realizador no mapa, sobretudo com o polémico Cathy Come Home, história de uma mulher, de novo interpretada por Carol White, arrastada numa corrente de crises provocadas pelo sistema – desde o desemprego à habitação – que culmina no momento dilacerante em que a assistência social lhe tira os filhos dos braços. .O episódio de Cathy Come Home foi tão chocante para os espectadores, pela linguagem vincada, a meio caminho entre o documentário e o teatro (bem diferente do estilo de docudrama de outros realizadores da mesma série), que houve quem escrevesse cartas à BBC a perguntar se o que tinha visto se tratava de ficção ou realidade... Não será este o melhor exemplo do poder de um filme de Ken Loach? Pleno de urgência e vigor de contemporaneidade, a ensaiar o humanismo em quem vê. .Até novembro, vão passar pelo Batalha outros títulos marcantes, como Agenda Secreta (1990), Ladybird, Ladybird (1994) ou o referido Brisa de Mudança, sem esquecer o trio final da sua obra: Eu, Daniel Blake, Passámos por Cá e O Pub the Old Oak. É hora de celebrar um cineasta da velha guarda, eternamente atual.