Fanny Ardant em boa companhia, ou os segredos de O Hotel Palace.
Fanny Ardant em boa companhia, ou os segredos de O Hotel Palace.

Celebrando as virtudes da comédia

Roman Polanski está de volta como uma comédia em que reencontra o humor cáustico das suas raízes polacas: 'O Hotel Palace' faz o retrato de uma galeria de personagens bizarras que se reúnem para celebrar a chegada do ano 2000.
Publicado a
Atualizado a

Em 1995, Kathryn Bigelow realizou Estranhos Prazeres, uma fábula amarga sobre o progresso tecnológico, “antecipando” um futuro próximo, ou seja, os últimos dias do ano de 1999. Dir-se-ia que O Hotel Palace, o filme de Roman Polanski revelado no último Festival de Veneza (a partir de hoje nas salas portuguesas), funciona como uma versão paródica de tal situação, transfigurando as inquietações da ficção científica numa sátira de implacável humor. Tudo acontece no cenário exuberante do lendário Gstaad Palace, na Suíça, acolhendo uma galeria de personagens mais ou menos bizarras que vêm celebrar a noite de entrada no ano 2000.

A lista de hóspedes desafia qualquer descrição objetiva. Convivemos, assim, com a marquesa sexualmente ansiosa que tem um cãozinho que gosta de pinguins (não é gralha: pinguins); há também um ricaço (ou talvez não) que prepara um golpe bancário, aproveitando as confusões informáticas do final do milénio; sem esquecer o cirurgião plástico cujo talento razoavelmente discutível se reflete no rosto insólito (não agravemos a descrição) de algumas senhoras… Através de tais exemplos - interpretados, respetivamente, por Fanny Ardant, Mickey Rourke e Joaquim de Almeida -, compreendemos que os atores foram desafiados para uma performance que cumprem com contagiante alegria: trata-se de assumir figuras caricaturais que, de modo mais ou menos perverso, espelham as ilusões mercantis deste mundo em que a felicidade passou a ser um “tema” do marketing.

Convém não ficarmos pela (falta de) memória que o marketing quase sempre exibe, por exemplo quando, no cartaz de O Hotel Palace, identifica Polanski como o cineasta de O Pianista (2002) e J’Accuse (2019). Certíssimo, sem dúvida, mas vale a pena recordar que as raízes criativas de Polanski envolvem também o gosto de um humor cáustico, por vezes à beira do surreal, em que a comédia negra nunca é estranha a uma metódica demarcação das teias da hipocrisia moral.

Lembremos, por isso, as suas primeiras curtas-metragens, rodadas ainda na Polónia natal, incluindo Dois Homens e um Armário (1958). E também Cul de Sac - O Beco (1966), Por Favor, Não Me Morda o Pescoço (1967), primeiro título de Polanski em Hollywood, ou ainda esse prodigioso conto do absurdo que é What? (1972), cuja atriz principal, Sydne Rome, reaparece em O Hotel Palace.

Claro que o novo filme não possui a complexidade narrativa nem a sofisticação simbólica dos já citados O Pianista e J’Accuse, ou ainda de O Escritor Fantasma (2010) - são, a meu ver, os melhores filmes de Polanski no século XXI. O que, bem entendido, não impede que lhe reconheçamos a capacidade de elaborar uma ficção que, da teatralidade dos cenários à cuidadosa direção de actores (sem esquecer a música saltitante de Alexandre Desplat), renova a energia de um humor de raiz polaca a que pertence também, por exemplo, Jerzy Skolimowski. Com uma “coincidência” que importa sublinhar: Skolimowski e a sua mulher, Ewa Piaskowska, colaboraram com Polanski na escrita do argumento de O Hotel Palace.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt