'Cartas portuguesas' reeditadas para dar vida à freira bejense que sofreu de amor
Numa feliz coincidência, Samantha Buglione, colunista brasileira do DN, publicou na véspera do Ano Novo “Os ditos de amor e as Lettres Portugaises”, mostrando a importância para o mundo lusófono, e não só, de uma obra literária que continua tão cheia de encantos e de mistérios como quando foi publicada pela primeira vez no século XVII. Ora, para assinalar os 300 anos da morte de Mariana Alcoforado (1640-1723), a freira portuguesa que se terá apaixonado pelo soldado francês Noël Bouton de Chamilly, a E-Primatur lançou em outubro uma edição das Cartas Portuguesas, com nova tradução e estudo histórico por José António Falcão, um historiador muito ligado ao Alentejo. Não esquecer que a religiosa, que chegou a Madre do Convento de Nossa Senhora da Conceição, era de Beja, daí também o apoio da Câmara a este livro, que fascina pelo célebre conteúdo epistolar, mas também pela análise histórica.
“Confesso-me um ‘convertido’ à veracidade histórica das cartas atribuídas à Madre D. Mariana Alcoforado. Quando comecei a estudá-las, estava persuadido da dimensão ficcional da narrativa que nelas perpassa, mas ao dissecar cada uma das cinco missivas, palavra após palavra, como um documento histórico (pois são-no também), recorrendo às ferramentas da mais estrita heurística do ofício de historiador, ‘caí do cavalo’. Literalmente. O que aí se relata é comprovado pelos factos, dentro do contexto da época, à escala local, nacional e, até, europeia. Mariana e Chamilly não constituem figuras distantes, perdidas na noite dos tempos: podemos aflorar os seus itinerários existenciais. Há uma coerência de fundo que causa arrepios, até pelas profundidades da alma sondadas neste veemente romance epistolar”, afirma José António Falcão.
Questionado sobre a intemporalidade destas Cartas Portuguesas, cuja primeira publicação foi em França em 1669 com o título de Lettres Portugaises, o historiador sublinha que “impressiona, ainda hoje, a actualidade das cartas. Embora imbuídas do espírito barroco, correspondem a algo senza tempo. Tão intemporais que poderiam ter sido escritas agora, mudando o que há a mudar, por uma jovem racializada dos subúrbios de Lisboa ou do Porto que o noivo, de outro meio, abandonou, porventura grávida, à inclemência citadina, em favor de esposa mais convencional. A paixão que as ilumina faz parte do património do amor universal, evidenciando uma crueza e uma verdade que me lembram muito algumas representações femininas de Paula Rego. Quem ama, quem amou, revê-se forçosamente nelas - e nelas pode encontrar resposta para a incompletude das paixões humanas”.
Acrescenta José António Falcão - que intitulou o seu estudo histórico de “Canto ao amor traído (Uma História Luso-Francesa)” - que Mariana é uma ‘mulher forte’, segundo a tradição bíblica, que triunfa sobre o infortúnio e singra, na arte de amar, novos e insuspeitos mares. A sua história tornou Beja, terra romântica por excelência, uma referência internacional. Completa à perfeição as obras de outros grandes escritores, aqui nascidos, que elevaram a teoria dos afetos aos píncaros do céu, como Al-Mutamid, o rei-poeta, ou Manuel Ribeiro, romancista que transitou do sindicalismo radical para o ideário neocatolicista e escreveu o melhor estudo publicado até à data sobre Mariana”.
Prova maior dessa intemporalidade das Cartas Portuguesas é ser permanente fonte de inspiração, seja quando no final do Estado Novo Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa (as Três Marias) publicaram Novas Cartas Portuguesas, seja bem recentemente, durante a pandemia, quando estreou-se a ópera Cartas Portuguesas , do brasileiro João Guilherme Ripper, que contou ter ouvido falar de Mariana Alcoforado exatamente por José António Falcão, em Beja, durante uma das edições do Festival Terras Sem Sombra, do qual o historiador é diretor.
Depois da estreia absoluta em São Paulo, com a soprano brasileira Camila Titinger no papel da freira, aconteceu a encenação em Lisboa, com a portuguesa Carla Caramujo a dar corpo e voz a Mariana. “Em novembro de 2020 estreei na Gulbenkian a ópera/monólogo Cartas Portuguesas baseada nas famosas cartas de amor da freira portuguesa do século XVII. Coube-me a hercúlea tarefa de encarnar Mariana Alcoforado naquela que seria a verdadeira personificação do sentimento angustiante da clausura. Vivíamos um momento muito difícil de pandemia que nos privava a todos de interação social e consequentemente emocional. Durante todo o processo de ensaios e récitas (transmitidas mas com muito pouco público no auditório), senti um sentimento arrebatador de comunhão emocional com essa mulher que viveu em clausura e teve que refrear as suas paixões e emoções, ao ponto de as sublimar de uma forma espiritual. Naquele momento também eu me sentia enclausurada por uma pandemia que me condicionava o trabalho, os afetos, as ações, e as mais elementares emoções”, testemunha a soprano. Que acrescenta: “Penso que acabou por ser muito especial e até um privilégio poder ter interpretado Mariana Alcoforado naquele ambiente tão ‘claustrofóbico’. E tal como Mariana também eu sublimei os meus medos e emoções através de algo muito espiritual - a música e a poesia”.
Sobre a publicação das Cartas Portuguesas pela E-Primatur, o editor Hugo Xavier explica que “a primeira motivação veio do estudo histórico de José António Falcão. A capacidade de sumarizar aquele que é um dos temas portugueses mais internacionalmente reconhecidos, e que se tornou uma história de amor que rivalizou com Romeu e Julieta ou Tristão e Isolda, atravessando culturas e sendo inspiração para obras literárias, teatrais, televisivas, cinematográficas, para pintura e escultura e composições musicais em quantidade que ultrapassa quase provavelmente qualquer outra ‘história portuguesa’. Claro que o motivo desse sucesso foi a aura de amor proibido mas também o facto de ter chegado ao mercado do livro de língua francesa no momento preciso em que a cultura livresca francesa assumia a liderança do mercado editorial no mundo ocidental constituindo pela primeira vez best-sellers avant-la-lettre... é algo extraordinário. O estudo histórico em si é uma história daquelas que dá prazer ler e contar. Esta edição fazia a diferença no mercado e trazia à obra um espírito de edição definitiva. Era irresistível”.
Regresso, para finalizar, ao artigo de Samantha Buglione, com uma citação que talvez justifique bem a pertinência desta nova edição de Cartas Portuguesas. “Ousaria dizer que poucos amores deram tão certo quanto o da freira de Beja e o do soldado francês, um amor capaz de permanecer no tempo, um tal de amor divino para alguns e para a tristeza dos seus amantes que preferiam, creio eu, os sussurros vulgares”, escreve a psicanalista e escritora.