Carolina Markowicz: “Gosto de pessoas, de personagens, e não as quero atirar para  uma fogueira”

Carolina Markowicz: “Gosto de pessoas, de personagens, e não as quero atirar para uma fogueira”

Homossexualidade, religião e crime cruzam-se num argumento engenhoso à volta de uma mãe e de um filho: 'Pedágio', coprodução brasileira e portuguesa, é uma das estreias fortes da semana. O DN conversou com a realizadora paulista Carolina Markowicz.
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Era uma vez uma mãe solteira que trabalhava numa portagem - ou pedágio -, e um filho que gostava de fazer vídeos reluzentes e efeminados, a cantar com a voz de Billie Holiday. Ela, Suellen (Maeve Jinkings), queria que o filho não lhe “fizesse passar vergonhas”. Ele, Tiquinho (Kauan Alvarenga), não está nem aí para comentários tacanhos. Um dia, porém, é obrigado a frequentar um workshop de cura gay ministrado por um padre português (Isac Graça), numa igreja de feição evangélica. Uma terapia dispendiosa financiada por um esquema criminoso na portagem onde Suellen trabalha. “O que uma mãe faz por um filho”, diz ela, na cegueira deste Brasil picaresco e magoado. 

Segunda longa-metragem de Carolina Markowicz, e o seu primeiro filme a estrear nas salas portuguesas, Pedágio impõe-se como um conto de energia universal, dentro da sua específica leitura da realidade brasileira. Não deprime nunca. É um olhar que cria um subtil filtro irónico e acredita no triunfo sereno do amor. Aí, talvez ao som de Dinah Washington.  

Pedágio é um filme de uma ironia deliciosa, apesar da mágoa e gravidade da sua questão central. É um filme que surpreende, por evitar o drama pesado. O que é que procurou neste alívio de tensão? 
Eu acho que quebrar a expectativa em relação ao drama é algo que, de certa maneira, está presente em todos os meus filmes. Gosto de ser surpreendida como realizadora e como espectadora - tenho curiosidade de experimentar tons, misturas, e não estar cingida à linguagem visual que se espera daquele tema. Gosto de tentar subverter, tentar encontrar um caminho diferente, não óbvio, sobretudo em termos de tom. Neste caso, não queria fazer só mais um filme sobre cura gay, mostrando graficamente o sofrimento das personagens, dando palco a esse sofrimento. Interessava-me a estranheza e o absurdo que envolve as pessoas que fazem e acreditam nisto. 

Vê com preocupação o crescimento deste tipo de cultos ultra conservadores? 
Preocupa-me, claro, mas já está tão instaurado que se aceita como qualquer coisa que faz parte. No Brasil, você vê uma igreja em cada esquina, é uma loucura! Não consigo imaginar como é que isto poderia aumentar ainda mais... O que me preocupa mesmo é a influência dessas igrejas, que se vê nas próprias eleições, com os pastores a orientarem os fiéis no sentido de votarem num determinado candidato, que obviamente é sempre alguém de extrema-direita. Isso é um grande problema. Porque os seguidores seguem mesmo! Enfim, toda a influência das igrejas remete para o conservadorismo e sempre existiu, pelo menos nas religiões muito ortodoxas. E acho que a igreja evangélica, no Brasil, é fruto da ausência do Estado em alguns lugares mais vulneráveis, onde essa igreja se torna uma espécie de refúgio, um motivo para continuar a viver. Todos nós humanos, existencialmente falando, precisamos desse motivo. E estas pessoas estão mais abertas à influência, não tanto por ignorância, mas porque precisam de algo a que se possam agarrar. Então, diria que é compreensível, até pelo espetáculo que se proporciona: o culto é um autêntico show! Por isso preenche também uma carência de lazer. 

Kauan Alvarenga e Maeve Jinkings: um conto de mãe e filho.



Como é que preparou as cenas da terapia de conversão? De onde é que tirou os elementos mais disparatados? 
As situações da cura foram inventadas. É claro que pesquisei muito, conheci muita gente, visitei muitos lugares e tal, mas inspirei-me particularmente no cenário político brasileiro, onde se vê um escárnio absoluto. Por exemplo, uma ex-ministra dos direitos humanos, agora senadora, que diz que as crianças não podem ter uma boneca da Disney, do filme Frozen, porque ela é lésbica, ou o pastor que num congresso começa a dizer sinónimos do seu órgão genital, ou ainda outro que usa uma peruca verde para desmoralizar a população trans... Estas pessoas dominam o palco político brasileiro. E em vez de serem descredibilizadas, é como se fossem levadas mais a sério! 


É o bullying à moda de Bolsonaro. 
Claro, com certeza. E é muito desanimador... Mas isto para dizer que me inspirei muito nessas pessoas. Porque o que elas fazem não deixa de ser uma “cura”, um “tratamento” massificado. Quando estamos a falar de alguém com poder e relevância, que teoricamente carrega uma verdade positiva para a sociedade e se comporta daquela maneira, o que se pretende é que as pessoas atingidas se sintam mal por aquilo que são. No fundo, este foi mesmo o ponto inicial da criação do filme: o ridículo que se vê no cenário político, e o porquê de o ridículo não ser considerado... ridículo. Gosto muito de trabalhar na fronteira do “não é verdade, mas poderia ser”. 

Isac Graça, o "exótico" padre português.



Esta mãe [Maeve Jinkings] não é homofóbica, mas também não consegue lidar com o olhar dos outros. Ela só está mesmo preocupada com o que os outros pensam... 
É exatamente isso: ela não é uma mulher homofóbica, e nem sequer religiosa. É uma mãe solteira que acorda de madrugada todos os dias, para ir trabalhar, ganha mal e tem de criar o filho sozinha. A ideia era mostrar uma pessoa que não consegue desligar-se da influência da sociedade homofóbica onde vive. Ela é produto dessa sociedade que diz que, se ela criou um filho que não é o padrão masculino, em todos os sentidos, então fez algo de errado. É quase uma questão de osmose. 

É a sociedade que incute o sentimento de culpa, como se vê pela colega e amiga da mãe, que a convence, com os argumentos mais inacreditáveis, a meter o filho na cura. 
Totalmente. Uma sociedade onde tudo o que fazemos é culpa, mas se for feito em nome de Deus, tudo é permitido: estamos isentados de qualquer preocupação moral. Essa personagem é a personificação da família “tradicional”, que não tolera os gays, mas não se importa tanto com amantes ou o facto de um marido bater na mulher, sendo também a favor do porte de arma, claro. Isso é muito, muito comum. 

Falemos agora do protagonista, Kauan Alvarenga, que é uma escolha perfeita. Sei que fez antes uma curta-metragem com ele... 
É um rapaz incrível. Trabalhei com ele na curta O Órfão [2018], que teve um bom percurso - estreou em Cannes e ganhou o Queer Palm -, e nessa altura foi merecidamente o alvo das atenções. Então, quando comecei a escrever o Pedágio, pensava muito nele: aquela falta de deferência pela câmara, um ar de enfado, muito próprio da adolescência... 

Um desprendimento que, curiosamente, nos faz querer segui-lo ainda mais. 
Eu tenho essa sensação também! É bom saber que não sou a única. Mas essa mesma sensação é o que faz com que a mãe se irrite com ele. É uma postura que faz parte da fase da adolescência. Eu não queria a história do “coitado do filho gay incompreendido”, com uma mãe vilã. O jeito do Kauan ajuda a manter o registo na zona acinzentada. 


E como é que se deu a coprodução portuguesa? 
A minha produtora brasileira já tinha realizado um filme em coprodução com O Som e a Fúria. Apresentou-me o Luís [Urbano], que é um querido, e ele entrou logo como produtor; demo-nos muito bem. Depois, o Isac [Graça] veio de uma forma inesperada: à partida, eu não tinha nenhuma intenção especial de ter um ator português no filme, mas também não estava a conseguir comprar as versões dos pastores que me apresentavam, aquele modelo do “senhorzinho de fato”, que já está muito vista e é um pouco cansativa... Faltava qualquer coisa. E foi aí que me apresentaram o Isac, que eu achei que tinha algo de muito improvável e podia ser interessante para a personagem. É um pastor que, além de vir de fora, tem o ar de quem conseguiria trazer jovens para a igreja. Isto misturado com uma vibe de pseudociência, que permite uma caracterização não cingida à igreja evangélica. 

Ele traz uma nota um pouco exótica, não é? Há esta ideia do Brasil como país exótico, e depois esta personagem europeia surge como a ave rara que ele próprio dá como exemplo na primeira sessão da cura. 
Essa analogia é muito interessante. Porque, de facto, a Europa olha para o Brasil pela lente do exotismo - samba, futebol, suor, cerveja, Amazónia... -, e neste caso a figura exótica é um europeu, de um país colonial. Metaforicamente, isso também faz sentido, porque o que ele representa é outra forma de colonizar... E foi muito divertido de filmar. Embora eu tivesse estabelecido com os atores que aquilo era a coisa mais séria do mundo! 

Sendo um filme que mexe com as crenças de muitas pessoas, em algum momento hesitou na abordagem? 
Tento sempre ter uma sensibilidade, uma delicadeza no tratamento dos temas. Gosto de pessoas, de personagens, e não as quero atirar para uma fogueira. Mas arriscar é importante na arte, pelo menos para mim. De resto, há sempre polémica, seja quando faço esse cálculo ou quando não faço. Temas espinhosos é assim. Agora, se me importa? Importa. Mas não quero deixar de fazer aquilo que quero ver.   

dnot@dn.pt

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