Cannes revela um clássico alemão de 1959
Momento invulgar na secção de Clássicos da 78.ª edição do Festival de Cannes (a decorrer até dia 24) foi a apresentação da cópia restaurada do filme Sterne, do alemão Konrad Wolf (1925-1982). É certo que o espaço do festival dedicado aos filmes “antigos” há muito ganhou uma dimensão invulgar, sendo um verdadeiro fórum de revisitação e redescoberta das memórias históricas do cinema. Seja como for, estamos perante uma raridade absoluta, até porque os trabalhos de restauro da filmografia de Wolf, em grande parte através da Cinemateca de Bolonha, são relativamente recentes.
O filme é um dos exemplos a refletir o empenho do festival em dar nova visibilidade a obras cuja história está também ligada a Cannes. Sterne, justamente, recebeu um Prémio Especial do Júri na edição de 1959 — nesse ano, o vencedor foi Orfeu Negro, de Marcel Camus, com Os 400 Golpes, um dos títulos fundadores da Nova Vaga francesa, a valer o Prémio de Realização a François Truffaut.
Nascido numa família judaica da Alemanha de Leste, cujo pai, Friedrich Wolf (médico com importante carreira política), era membro do Partido Comunista Alemão, Konrad Wolf viveu na URSS depois da chegada dos nazis ao poder. Nessa medida, teve uma formação fortemente marcada pela estética soviética do chamado “realismo socialista”. Resultante de uma coprodução Alemanha/Bulgária, Sterne é um objeto que não é alheio a algumas componentes dessa estética, nomeadamente na composição dos espaços, nos contrastes visuais da montagem e no tratamento dos rostos; de qualquer modo, a sua importância histórica não pode ser desligada do facto de ter sido um dos primeiros títulos de raiz alemã a conter referências explícitas ao Holocausto.
A ação envolve, assim, um inesperada e perturbante cruzamento da memória histórica com elementos melodramáticos. Assim, as personagens centrais são um oficial nazi em serviço na Bulgária ocupada pelos alemães e uma mulher búlgara; a relação amorosa que entre eles se estabelece nasce num contexto em que muitos judeus búlgaros e gregos são enviados em comboios para Auschwitz, com alguns deles ainda a alimentarem a ilusão de que vão trabalhar em campos de cultivo de flores — o título Sterne [“Estrelas”] refere-se às Estrelas de David que os judeus são obrigados a usar no seu guarda-roupa.
Projetando-nos num contexto de produção muito particular, eis um filme que nos ajuda também a reconhecer que o chamado “filme de guerra” não pode ser reduzido aos padrões que, sobretudo ao longo das décadas de 1940-50-60, marcaram a produção de Hollywood e também de países europeus como França, Itália e Reino Unido. Sem esquecer que a sua passagem em Cannes, em 1959, ficou condicionada pelo facto de a França não ter relações diplomáticas com a França — em boa verdade, o filme esteve na Côte d’Azur como representante oficial da Bulgária.
Em Cannes