Cannes não pára de dançar a melodia louca de Annette

Adam Driver e Marion Cotillard pararam o trânsito na escadaria vermelha com o fabuloso <em>Annette</em>, de Leos Carax. Luz e trevas num musical com as canções dos Sparks. O filme abriu o festival e está desde hoje nos cinemas portugueses.
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Metamorfose sobre metamorfose. Adam Driver a transformar-se em Leos Carax, a música dos Sparks a ficar bizarramente negra e Marion Cotillard a fundir-se num ser do fundo do mar. Assim é o teatro de marionetas deste musical a partir de canções desencantadas dos Sparks. Um filme de abertura que é também uma aposta da competição e que já está a provocar iguais doses de fascínio e adesão. Um ama-se ou se odeia que conta a história de um casal perfeito: Henry, comediante provocador e Ann, soprano superstar. Depois de nascer o bebé Annette, uma boneca de madeira, o paraíso começa a quebrar-se. Henry parece não estar preparado para a felicidade e todo esse peso começa a esmagá-lo. Tudo isso é encenado através de canções que não obedecem a números musicais estruturalmente clássicos. As personagens falam a cantar mas também no coro há melodias enquanto o casal faz sexo oral ou em cima de uma motorizada em túneis negros de Los Angeles.

Para Carax o que é urgente é convocar fantasmas perdidos, por isso mesmo olha para a personagem do comediante como um alter-ego de si mesmo, sobretudo quando se sabe que o cineasta já perdeu a sua musa. Em boa verdade, na insanidade de todo este projeto está uma catarse tão íntima como feérica, tão poética como carnavalesca. E é nesse trago de tragédia que o som da banda dos manos Mael se torna numa estranhíssima locomotiva de dor e festa triste. Annette é então uma provocação de um artista que pede ao espetador para alinhar neste espaço VIP de abismo. Adam Driver, poderoso como nunca, soletra em inglês todas as letras dessa palavra: ABISMO!

Longe de ser um musical fofinho ao sabor das últimas modas, Annette faz da ginástica do conceito ópera-rock uma espécie de "tour-de-force" de um gesto trágico. Ao mesmo tempo, Leos Carax está também a fazer um comentário à cultura do fascínio pelas celebridades na América e aflora com força as questões fulcrais do #MeToo. Faz também do cliché um aliado e nunca tem medo de decisões arriscadas, sobretudo quando afronta as referências ao conto Pinóquio. De facto, não é bem o filme fácil de grande público que muitos pensavam (o trailer engana muito) e se as vozes de Cotillard e Driver não são profissionais no canto aí também reside o seu lado áspero e não linear. A meio do filme sente-se algum peso, mas é no final que tudo depois ganha um novo sentido e aí é preciso ficar para além do genérico final. Annette assume os seus delírios de grandeza e o pacto com espetador obriga a um salvo conduto para o excesso. Carax não filma nada para o boneco, mesmo quando somos hipnotizados com um rosto de uma...boneca. Enfim, o cineasta francês continua um animal selvagem de cinema...

Para lá dos filmes, em Cannes a distância social é miragem. As salas estão a abarrotar e na sala principal, o Lumiére, afinal, ninguém precisa de entrar com teste negativo. Um festival que toma riscos artísticos e sanitários. Nas salas Bazin e Buñuel aí sim há ordem do teste antigénico. O problema é a entrada: além de todos terem de mostrar a acreditação, o teste, serem revistados, há ainda a necessidade de tirar a máscara para reconhecimento facial. As filas ficam intermináveis...

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