"Camões é um poeta de primeira classe, um dos melhores escritores de sonetos da literatura mundial" 

Desde o século XIX que Os Lusíadas têm uma edição em húngaro e sabe-se que há leitores fiéis de Luís Vaz de Camões até hoje. Mas com esta sua nova tradução de sonetos do poeta português, Árpád Mohácsi ambiciona que essa admiração vá além da epopeia.

Como húngaro, de onde surgiu o seu interesse pela língua portuguesa?
Na Hungria, a história e a literatura portuguesas são geralmente pouco conhecidas, sendo consideradas um pouco periféricas ou exóticas em comparação com as principais nações europeias. Sempre me interessei muito pela história, e originalmente estudei história na universidade. As minhas primeiras experiências com os portugueses também foram relacionadas com a história. Quando ainda estava no liceu, li um livro de mistérios medievais e histórias interessantes sobre o Rei Pedro e o amor de Inês, e isso capturou realmente a minha imaginação. E quando estava a aprender sobre a Era das Descobertas, fiquei muito impressionado por a vida poder ser vivida como uma espécie de viagem, que aventura! A Hungria não tem mar, por isso também foi impressionante que os portugueses pudessem simplesmente ir para o mar e partir para ver o mundo. Havia muitas coisas para aprender na universidade, e eu tentei muitas coisas. Eu também comecei português. E adorei-o desde o primeiro minuto. Era um departamento pequeno, toda a gente conhecia toda a gente, eu tinha ótimos professores e havia muitas pessoas interessantes entre os alunos que passaram a ter grandes carreiras. Era uma companhia muito boa. Os meus professores, Zoltán Rózsa, Ervin Székely, Ferenc Pál, István Rákóczi e Ildikó Szijj foram muito entusiásticos no ensino e muito solidários quando estávamos interessados em algo. E nós estávamos interessados em tudo. Foi principalmente graças ao departamento de português e aos meus professores que me tornei um tradutor literário. Quando repararam que eu estava interessado na tradução literária, deram-me (e criticaram) os meus primeiros trabalhos de tradução, selecionaram o meu trabalho para antologias departamentais, apontaram autores interessantes. No decorrer dos meus estudos, descobri que os portugueses também tinham uma certa afinidade com os húngaros, e isso tornou a cultura portuguesa ainda mais interessante. São Os Lusíadas que mencionam as alegadas ligações húngaras do primeiro monarca português.

O que significa para si traduzir Camões, figura maior da literatura desse país que o fascina pela história?
Camões é um poeta de primeira classe, um dos melhores escritores de sonetos da literatura mundial, ao lado de Petrarca, Shakespeare e Ronsard. Infelizmente, ele não é bem conhecido na Hungria. As pessoas cultas sabem o seu nome, mas no máximo conhecem a sua epopeia. No entanto, o tratamento romântico da vida de Camões alcançou a literatura húngara a muitos níveis e em muitos períodos, mas de alguma forma ele nunca se tornou realmente um autor da moda, embora tenham sido feitas várias traduções de alta qualidade da sua epopeia e dos seus poemas. Talvez a razão para esta negligência seja que qualquer coisa fora do centro europeu está fora do horizonte de interesse dos leitores húngaros. Considero ser minha própria tarefa como tradutor literário de Camões mostrar ao maior número de pessoas possível em húngaro o quão fascinante e interessante é a lírica de Camões. O desejo eterno, o amor, o medo da morte, um olhar hipnotizante são tão importantes hoje como eram no tempo de Camões. Eu quero mostrar o engenho poético destes sonetos como obras de arte. Eu queria colocar poemas bem legíveis, suaves e agradáveis nas mãos dos leitores húngaros. Eu não uso notas, não quero distrair o leitor húngaro do prazer do trabalho, existe o Google, se alguém precisar de alguma informação pode encontrá-la rapidamente. Eu não sou apenas um tradutor literário, eu também escrevo os meus próprios poemas. Assim, com as traduções de Camões eu também tinha um objetivo um pouco egoísta, eu próprio queria tornar-me um poeta melhor. Eu queria aprender o que só se pode aprender com um poeta verdadeiro. Eu queria aprender o seu saber. Um poeta uma vez aconselhou-me, no início da minha carreira, que se eu quisesse aprender a escrever poesia, eu deveria traduzi-la. Mas devo ter o cuidado de escolher excelentes poemas, que são realmente difíceis de traduzir. Os poemas de Camões são assim mesmo...

Sei que também já traduziu Fernando Pessoa. Como vê este poeta português da primeira metade do século XX, talvez o mais global hoje em dia?
A receção de Pessoa na Hungria foi muito mais afortunada do que a de Camões. Foi traduzido relativamente cedo, e pelos melhores tradutores literários. Isto criou imediatamente uma espécie de culto para Pessoa, que desde então tem tido um pequeno mas entusiástico público leitor na Hungria. Os seus trabalhos estão disponíveis em várias traduções. O âmbito da obra de Pessoa é vasto, nem tudo está em húngaro, mas grande parte está disponível, incluindo a sua prosa. As obras de Pessoa são difíceis de ler, e por muito que as ame, tenho de dizer que requerem um grande empenho dos leitores, o que reduz o potencial de leitura. Em primeiro lugar, é preciso compreender as figuras heterónimas, é preciso ter consciência do modo de expressão a que estão ligadas e, além disso, estes textos estão muitas vezes enraizados numa tradição poética que não existe em húngaro; ou não existe da forma viva que existe na poesia portuguesa. Portanto, o leitor húngaro tem de trabalhar arduamente para interpretar um poema de Pessoa. Os mais próximos do meu coração são os poemas de versos livres de Álvaro de Campos, se me é permitido dizer um favorito. A língua que Pessoa usa nestes poemas é quase desconhecida em húngaro. Por uma questão de precisão, devo notar que tem havido alguns poetas que tentaram algo semelhante em algumas das suas obras, por isso prefiro usar a palavra "algo invulgar" para descrever estes textos. Quando escrevi o texto em húngaro pela primeira vez, mal pude acreditar que era possível escrever um verso livre de tal intensidade, ou qualquer texto, em húngaro. Pessoa mudou tudo o que eu tinha pensado sobre poesia antes.

Que outros nomes da literatura portuguesa traduz ou gostaria de traduzir?
Traduzi muito português, também gosto muito de literatura medieval, Dom Dinis, Pero Meogo, Airas Nunes de Santiago são os meus favoritos. Entre os poetas portugueses mais recentes, traduzi poemas de Al Berto, Eugénio de Andrade, José Luís Peixoto e do brasileiro Carlos Drummond de Andrade. Estou muito orgulhoso por ter traduzido os poemas galegos de Manuel António e do ciclo galego de Federico García Lorca, e talvez ainda mais orgulhoso por ter conseguido que fossem publicados em forma de livro. Traduzi também duas peças de teatro em português, uma de Abel Neves e outra de Jaime Rocha. Tento manter os olhos abertos, procurando constantemente por obras de autores antigos e novos.

leonidio.ferreira@dn.pt

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