Bigfoots e a excelência do mestre Scorsese
O Bigfoot, homem-macaco meio Neandertal, parte do folclore místico americano, está bem vivo e anda à solta numa floresta montanhosa isolada dos EUA. Pelo menos, é esta a teoria dos manos Zellner que filmam uma família de Sasquatches, nome também usado na América para estes “abomináveis” seres peludos. Sasquatch Sunset, descoberto antes no Festival Sundance, confirmou-se como um dos títulos mais revigorantes da seleção deste ano, mesmo que tenha sido chutado para fora-de-competição na Berlinale Speciale, secção das antestreias e, nesta edição, de filmes mais “off”.
Sem diálogos, esta comédia provocatória dos realizadores de O Herói, o Vilão e a Donzela mostra como uma família destas criaturas tenta sobreviver às diversas estações do ano numa paisagem de floresta com perigos diversos: desde animais predadores, quedas de troncos, frutos indigestos, etc. Pelo caminho, há uma gravidez e sinais que eles próprios não compreendem. Aos poucos, quer as personagens, quer o público, percebe que eles podem não estar sozinhos. Com atores completamente irreconhecíveis como Riley Keough e Jesse Eisenberg no literal fato-de-macaco, Sasquatch Sunset talvez consiga ser o novo A Guerra do Fogo (o saudoso filme de Annaud de 1981), apesar de mandar às urtigas as regras da bom senso: tem humor em cenas de sexo explícito, abusa sem vergonha de vómitos e gazes mas consegue sempre um equilíbrio entre a profundidade espiritual de uma existência humana no limite com um sentido de puro entretenimento de cinema de aventuras. Uma enormíssima experiência de desconforto sem medo de nada. Há algo mesmo literalmente selvagem nesta aposta americana que está destinada a muita polarização.
Ouro para Scorsese
Ontem foi também a tarde de um encontro com a imprensa do vencedor do Urso de Ouro de tributo, a lenda Martin Scorsese. O cineasta atualmente nomeado a Óscares de melhor filme (Maestro, no qual é produtor, e, claro, Assassinos da Lua das Flores) e melhor realização, falou com uma garra imprópria de um idoso de 81 anos.
Para o realizador de clássicos como Taxi Driver e The Departed- Entre Inimigos (filme que foi o escolhido para ilustrar a sessão de homenagem), os grandes festivais de cinema continuam a ser importantes. Scorsese continua a disparar discursos de júbilo cinéfilo em respostas vivaças e longas, mas também soube ser sucinto quando uma jornalista fã lhe pediu para se descrever: “ora, isso é um mistério”.
Fez questão também de não confirmar se sempre vai filmar mais um filme com a figura de Jesus Cristo, mesmo confirmando que o tema lhe interessa: “estou ainda a contemplar... Se o fizer será único e provocante, mesmo que seja com entretenimento. Mas ainda não sei como o fazer. Agora preciso de continuar a promover o Assassinos da Lua das Flores e depois parar para finalmente dormir. Pode ser que depois acorde com uma ideia fresca e brilhante e queira logo filmar”.
Quando também questionado sobre o que tem visto ultimamente, lembrou que o facto de ter 81 anos o obriga a ser mais seletivo, mas referenciou os filmes também nomeados aos Óscares Dias Perfeitos, de Wim Wenders e Vidas Passadas, de Celine Song.
Ficam também na retina a confissão que no seu percurso quis fazer um “reboot” completo da sua forma de filmar: “essa necessidade de me reinventar aconteceu primeiro quando ia filmar O Rei da Comédia – quis que fosse tudo diferente. Também voltou a suceder o mesmo com O Irlandês, tive de perceber qual o significado de colocar ali ou noutro local a câmara, refletir sobre o que filmar. O filme é longo e tem muitos planos. Não quis fazer igual, pus em causa tudo – será que é preciso um plano de um carro a arrancar? Será que é preciso um plano geral para determinada cena? Não fará sentido jogar com a música? Quis aprender cinema de novo e não há ali um único plano que não esteja pensado segundo uma nova lógica e sempre um função das personagens”.
Pelo meio, um jornalista búlgaro de 21 anos a fazer uma imitação sem piada a Jack Nicholson em The Departed. Uma imitação desastrosa e sem piada, daqueles momentos de vergonha alheia a mostrar que a Berlinale não pode dar tantas acreditações de imprensa. O mestre riu com cortesia. No final, aplausos para um santo do cinema que nesta Berlinale aparece ainda no documentário que produz: Made in England: The Films of Powell and Pressburger, de David Hinton.