A afirmação é tão incerta como os proverbiais brioches de Maria Antonieta, mas não deixa de ser significativa: "Madame Bovary sou eu" terá dito Gustave Flaubert no tribunal que o acusava de atentar contra a moralidade da França de Napoleão III, com o seu romance Madame Bovary, publicado em 1856. Mesmo não havendo registo escrito da declaração, seja nas atas do tribunal, seja na vasta correspondência do escritor, a frase ficou e atesta a vida própria que a personagem de Emma Bovary tomou, sendo conhecida mundialmente, mesmo por quem não leu o livro ou não sabe muito bem quem foi o seu autor..E, no entanto, há Flaubert para além desta Madame que teima em ocupar todo o espaço quando falamos do escritor, cujo bicentenário do nascimento se assinala este domingo. Há 200 anos, em Ruão, Gustave foi o segundo dos seis filhos do médico Achille Cléophas Flaubert, cirurgião-chefe do Hospital local, e sua mulher Anne Justine. Será no Colégio Real, onde estuda, que, para perturbação da sua austera família, manifestará as primeiras ambições literárias. Aos quinze anos, interessa-se por teatro, e compõe um drama histórico em cinco atos, em prosa, Luís XI. Em 1837, escreve o seu primeiro romance, Rêve d"enfer, uma obra ainda imatura e juvenil, mas que já evidencia um esboço dos traços que caracterizariam as suas futuras heroínas. Também aos 15 anos há-de apaixonar-se por uma mulher casada e onze anos mais velha do que ele, Elisa Schlesinger, que amará pela vida fora. Trinta anos depois declarará à própria a constância desse amor mas não foi feliz. Embora já viúva, Elsa não lhe correspondeu. Em 1846 conhece Louise Collet, separada do marido e mãe de uma jovem de 16 anos, amante do filósofo Vitor Cousin, iniciando um romance com ela. Dessa relação nasce uma abundante correspondência, publicada em livro, hoje considerada essencial para o estudo da vida e obra de Flaubert..Dedicado à escrita e às viagens (entre 1849 e 1852, andará pelo Egito, Jerusalém, Constantinopla e Itália, um périplo de que resultará o romance Salambô, passado em Cartago na Antiguidade) trabalha já na que há-de ser a sua obra-prima absoluta. Madame Bovary é impressa na Revue de Paris, por Laurent Pichat e Maxime Du Camp, em outubro de 1856. Resultado de cinco anos de trabalho, o romance afigura-se aos olhos dos seus contemporâneos como uma mordaz depreciação dos valores burgueses consubstanciados no casamento de Emma, rapariga cheia de fantasias tão românticas como banais, com um médico de província sem rasgo nem ambição, Charles Bovary..Mal o livro começa a ser publicado em folhetins, como era frequente na época, Ulbach, secretário da Revue de Paris, faz objeções sobre a cena do fiacre, em que Emma se entrega ao amante Léon, que foi "omitida". Apesar desse "cuidado", a censura decide suspender a publicação da obra e processar o autor, sob a acusação de imoralidade. Em janeiro de 1857, Flaubert senta-se no banco dos réus, mas é absolvido pelo Tribunal do Sena, em Paris, a 7 de fevereiro de 1857. Segundo a lenda, terá sido nestas circunstâncias que, em sua defesa, o escritor terá proferido a frase que lhe serve de epitáfio literário: "Madame Bovary sou eu"..A posterioridade apoderar-se-ia do livro e da sua protagonista de desditoso fim. Para além dos milhares de edições em dezenas de línguas, Madame Bovary já foi adaptado ao Cinema e Televisão várias vezes (entre outros por Jean Renoir, Claude Chabrol, Vincent Minelli e até por Manoel de Oliveira, já que Vale Abraão assenta numa variação do tema por Agustina Bessa-Luís). A própria Psicologia forjou o conceito de "bovarismo" para designar comportamentos de insatisfação emocional crónica, frequentemente assentes na negação de uma realidade percecionada como pouco satisfatória. Mas para o cânone literário ocidental ela parece corresponder a um clarão de modernidade no bafiento panorama literário da primeira metade do século XIX, marcado pelos "vícios" do ultra-romantismo..Para a escritora Julieta Monginho, Madame Bovary, como outros textos do escritor, antecipa muitas coisas que aconteceriam na Literatura e nas Artes só décadas depois: "A maneira como ele constrói a narrativa é tão visual que se torna quase cinematográfica. Antes de o cinema ser inventado pelos irmãos Lumière, Flaubert atua como uma câmara. Kafka, de uma maneira diferente, também é muito visual mas era um bom cinéfilo e essa marca nota-se. Mas o que Flaubert faz são autênticos travellings, zooms e uma série de movimentos de câmara. Creio que isso é muito estimulante para o leitor, que se sente compelido a reconstituir ele próprio a cena na sua mente.".Para Fernando Pinto do Amaral, poeta e professor de Literatura na Faculdade de Letras de Lisboa, "Madame Bovary é um daqueles casos raros em que a personagem é mais conhecida do grande público do que o seu autor. Nós, hoje, olhamos para ela como de certo modo olhamos para a Anna Karenina, do Tolstoi, e percebemos que elas são mais conhecidas do que o próprio escritor. Há poucos autores que consigam criar uma personagem tão poderosa.".Mas nos 58 anos que viveu (morreu a 8 de maio de 1880), Flaubert escreveu outras obras dignas de leitura atenta. Fernando Pinto do Amaral destaca Dicionário das Ideias Feitas: "Antes de mais acho que se deve sempre ler Flaubert porque a sua escrita, de grande qualidade, é fluida, natural, sem pretensiosismo, nesse sentido muito comparável à do nosso Eça de Queiroz. Gosto muito do Dicionário de Ideias Feitas (Dictionnaire des Idées Reçues, no original), que é um conjunto de textos, organizado de forma enciclopédica, sobre clichés e estereótipos que a maioria das pessoas aceita sem questionar. É uma obra cheia de humor, ironia, com um sentido crítico feroz e agudo mas ao mesmo tempo terno". Para o poeta, há ainda que prestar atenção a Educação Sentimental, um livro que o marcou na sua juventude, muito antes de mergulhar na leitura da Bovary. Julieta Monginho sente mesmo que este é um livro que não se pode ler demasiado cedo: "Foi o que me aconteceu. Lembro-me de, nessa fase em que começava a ter uma vaga ideia de que poderia vir a escrever, foi uma leitura um pouco intimidatória. Como o Tolstoi. Pegamos naquilo e só vemos a perfeição de que nunca seremos capazes.".Para a escritora, Bovary e outras obras de Flaubert (como os contos ou a Educação Sentimental) são de uma grande mestria. "O grande inimigo dele era a estupidez humana e em todas as suas obras, até mesmo na última que deixou inacabada (Bouvard e Pécuchet) aparece quase um inventário dos vários tipos possíveis que essa estupidez pode assumir." Para além de Bovary, Julieta destaca o conto Um Coração Simples (incluído no livro Três Contos): "A personagem principal é uma criada (segundo dizem inspirada na da sua própria família) chamada Felicité, que pouca felicidade teve na vida. Acabou surda e quase cega, tendo por única companhia um papagaio (que inspirou ao britânico Julian Barnes o livro O Papagaio de Flaubert).".A revolução protagonizada por Flaubert na ficção é, ainda para Julieta Monginho, apenas comparável à que seu contemporâneo Charles Baudelaire fez na poesia: "Gosto do modo como ele aproxima a prosa da poesia, não no sentido lírico, mas porque procurava que cada frase tivesse o rigor de um verso, o que é um objetivo muito ambicioso, claro está. É curioso como esse desígnio o aproximou de Baudelaire. Aliás, os dois tinham um bom relacionamento e apoiaram-se mutuamente quando tiveram processos com desfechos diferentes: Flaubert conseguiu que o livro fosse publicado, apesar do escândalo, já As Flores do Mal, de Baudelaire, não teve a mesma sorte.".Citado e revisitado dezenas de vezes por várias artes e disciplinas, Flaubert parece ter uma qualidade, difícil de definir, que paira acima da História e das suas inevitáveis mudanças. Porquê? Talvez porque, como escreve Julian Barnes no referido O Papagaio de Flaubert, nos ensina "a olhar para a verdade e a não temer as suas consequências; ensina-nos, como Montaigne, a dormir na almofada da dúvida; ensina-nos a dissecar as partes constituintes da realidade e a observar que a natureza é sempre uma mistura de géneros." Como se o fiacre em que Emma se entregou a Léon, deixando cair a luva em sinal de abandono, continuasse a rodar nas nossas cabeças cheias de tecnologia..dnot@dn.pt