Berlinale. Um festival sem favoritos
Adivinhar o Urso de Ouro é o desporto mais perigoso do mundo, sobretudo este ano com um júri presidido pela atriz Lupita Nyong'o e com jurados presumivelmente radicais como o catalão Albert Serra e o berlinense Christian Petzold. À partida, é difícil encontrar favoritos, em especial devido a uma competição em que a variedade foi grande e não terão surgido obras-primas. Uma competição sem desastres e com uma média de qualidade assinalável, mesmo com muita imprensa a reclamar. Hoje ao final da tarde sabe-se o palmarés principal e há um filme que já parece ter ganho o prémio de simpatia: My Favourite Cake, do casal Maryam Mogdaddam e Behtash Sanaeeh, uma história de amor na terceira idade, claramente a obra mais consensual. A sua possível vitória serviria também como um grito de protesto contra o regime iraniano – não esquecer que os cineastas não foram autorizados a viajar...
Por outro lado, fala-se nos corredores da Postdamer Platz que a aventura americana do mexicano Alfonso Ruizpalacios pode ter hipóteses. La Cocina teve uma grande divisão nas notas dos críticos acreditados mas não deixa de ser um dos filmes bons que mais mediatismo teve nesta competição com déficit de alarido, algo compreensível com a falta de filmes americanos. Curiosamente, o melhor filme a concurso poderá ter vindo dos EUA, A Different Man, de Aaron Schimberg, com Sebastian Stan na pele de um homem que deixa de ficar desfigurado e descobre mais tarde que quem vê caras não vê corações. Trata-se de um objeto que dificilmente poderá figurar no palmarés em virtude de já ter sido mostrado no Festiva Sundance. Um Urso de Ouro para um filme que não é estreia mundial não deixaria de ser bizarro.
Também querido da imprensa, o alemão Dying, de Mathias Glasner, sobre uma família onde a morte e a sua chegada parece aproximar todos. Um exemplo de um cinema alemão narrativo que quer chegar a um público largo. Seria um prémio que cairia bem numa indústria alemã que precisa cada vez mais de se internacionalizar.
Nos últimos dias, cresceu o falatório em torno de Devil's Bath, de Veronika Franz e Severin Fiola, uma história verdadeira com toques de sobrenatural sobre uma camponesa que decidiu rebelar-se de um mundo patriarcal na Áustria rural de 1750. É um filme assumidamente feminista e nesta altura do campeonato pode ser importante a nível de escolhas dos jurados.
Um ator inesperado
No que toca a interpretações, recorde-se que o prémio é unissexo e só ganha uma pessoa. Provavelmente é de bom senso apostar em Adam Pearson, o desfigurado de A Different Man, um ator com um carisma difícil de explicar, quanto mais não seja porque o seu tumor facial não lhe permite um variado espectro de expressões, mas é inegável todo um talento invisível. Ao mesmo tempo, não será má ideia apontar o irlandês Cillian Murphy como presumível favorito em Small Things Like These, de Tim Mielants, mesmo se tivermos em conta o quão frouxo este objeto é. Murphy é o favorito ao Óscar de melhor ator em Oppenheimer, de Christopher Nolan e aqui é tocante como um pai de família que desafia as convenções católicas ao ajudar uma jovem maltratada pelas freiras do convento das Irmãs Madalena.
Ouro para Rooney Mara?
Se o júri for para as mulheres, Rooney Mara terá de ser considerada em La Cocina, onde interpreta uma mulher muito sexual num dia infernal num restaurante em Nova Iorque. Uma interpretação destemida de uma atriz que rasga uma certa imagem de correção. A grande concorrência que terá vem do Irão, da veterana Lily Farhadpour, comovente em My Favourite Cake como uma dama de 70 anos a desafiar a polícia da moral em Teerão e a propor um encontro sexual com um estranho num delicioso conto do Viagra. Igualmente, ter em conta a força da nórdica Sidse Babett Knudssen em Sons, de Gustav Moller, outro dos filmes que está nas listas dos favoritos.
A impressão ou a marca que a Berlinale número 74 vai deixar passa pela fibra politizada dos filmes, isto num festival em que se falou mais de causas e ativismo do que de arte cinematográfica. A beleza silenciosa como Olivier Assayas filma a paisagem pastoral da sua casa de campo em Hors du Temps será que choca com este clima? Choca, mas é bom perceber que o cinema arqueológico de Margarida Gil em Mãos no Fogo foi bem recebido pelo público na secção Encontros. Nesta politização, toda imagens de arte com cinema puro são como um bálsamo de alívio.
Uma surpresa chamada Pepe
E quando ninguém esperava, eis um filme experimental e radical no meio da competição. Pepe, de Nelson Carlos de Los Santos, cineasta da República Dominicana, é a autêntica ave-rara desta seleção oficial. A história de como Pepe, um hipopótamo, foi perseguido na Colômbia depois de ser importado de África por Pablo Escobar, traficante que estava a criar um portentoso zoo privado.
A petulância deste objeto insano é que coloca o hipopótamo a dialogar, primeiro em dialeto africano, depois em castelhano. Paralelamente, há a comédia absurda de uma comunidade de pescadores que pede a intervenção do Estado para caçar o animal. É daqueles casos de cinema que no começo parece ser uma celebração de uma brincadeira de mau gosto, mas que ao passar do tempo parece ganhar uma embalagem própria e única, mesmo quando pica as normas todas do filme ensaísta: “look” do real, mistura de formatos de película, etc. Mas fica a sensação sempre de estarmos a ser genuinamente desafiados, neste caso abanados por um composto de laboratório do mais delirante burlesco. Afinal, uma espécie de National Geographic sobre a estupidez humana.