Berlinale - O festival João Canijo
O Festival de Berlim começa hoje a sua 73ª edição. Um Festival com uma insólita dobradinha de João Canijo. O realizador português traz Viver Mal e Mal Viver, este último em competição. Será também prudente pôr as mãos no fogo por Cidade Rabat, de Susana Nobre, no Forum. O DN estará com cobertura diária até dia 25.
Não será um festival com muitas estrelas. Aliás, Berlim é cada vez mais um encontro de cinema de nichos e muito pensado para descobrir novos autores, uma vocação que é consequente de um calendário que faz com que os estúdios de Hollywood privilegiem antes Cannes e outros festivais (e mesmo Sundance joga aqui um papel...). Se pensarmos no que se passou o ano passado com filmes como Alcarràs, de Carla Simón ou Incroyable mais Vrai, de Quentin Dupieux, cedo se chega à conclusão que o cinema americano faz falta mas não é fundamental. A direção artística de Carlo Chastrian, através do sucesso da secção Encontros, tem conseguido ser exímia numa curadoria que apela e bem à descoberta e a um cinema perto da atual vibração social europeia.
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De Portugal chegam três filmes, mais um ano forte do nosso cinema na Berlinale. João Canijo tem o díptico Mal Viver e Viver Mal. O primeiro está competição e o segundo na secção Encontros. Dois filmes que se cruzam no mesmo cenário e com as mesmas personagens, neste caso num hotel na praia de Ofir. Mal Viver é um relato sobre a família que gere esse hotel, em especial em torno de uma mãe e uma filha com a sombra do suicídio a pairar. Pode-se já dizer que se encontra uma Anabela Moreira a levar até aos limites todo o tornado de realismo que vinha acumulando nos filmes de Canijo.
Viver Mal foca-se mais nos hóspedes e nas suas relações. As ações de ambos filmes cruzam-se e o elenco é igual, mas neste há uma espécie de foco num casal à beira da separação; uma mãe que encoraja o casamento da filha, para poder manter uma relação clandestina com o seu marido; outra mãe que parece controlar a filha. Oportunidade para reencontrar nomes como Beatriz Batarda, Nuno Lopes e Rafael Morais.
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Helen Mirren e o caso Golda
Desde Cartas da Guerra, de Ivo Ferreira, que o cinema nacional não tinha direito à competição no Festival de Berlim. Mas no Forum, secção onde sobretudo se dá prioridade ao risco, temos o regresso à mesma de Susana Nobre, cineasta que está agora a sair com habilidade do documentário e a instalar-se na ficção, neste caso com um registo muito feliz de contar uma história pessoal e transmissível ambientada nos meandros do cinema português "indie". Um filme também marcado por uma fabulosa Raquel Castro, uma espécie de versão da realizadora (ver entrevista em baixo).
De resto, como curiosidade este é um festival com biopics, tendência muito constante aqui na capital alemã e onde o título mais esperado é Golda, de Guy Nativv, com Helen Mirren a dar corpo a Golda Meier, a Dama de Ferro de Israel. Há ainda um filme desfocado de Hang Sangsoo para criar bruá nos Encontros e na competição apetece ficar com água na boca com títulos como Past Lives, de Celine Song, já nas conjeturas dos Óscares de 2023 e Suzume, de Makoto Shinkai, animação japonesa já adquirida para Portugal.
Raquel Castro - A atriz que vai surpreender a Berlinale!

João Canijo vai ao Festival de Berlim com dois filmes que serão apenas...um! Ou a consagração internacional depois de flirts em Cannes e Toronto.
Esta personagem é um espelho da realizadora? Como foi essa transformação?
Nunca me foi pedido que tentasse ser um espelho da realizadora. isso terá de ser ela a responder, foi ela quem escreveu...O meu processo enquanto intérprete começa no guião e na abordagem às situações ali descritas, ou seja, na invenção de uma mulher a partir daquelas palavras e da direção da Susana. A construção da personagem é reflexo das minhas tentativas, das indicações que recebi por parte da Susana e de outras pessoas da equipa, da roupa, da maquilhagem, e do que aconteceu nos ensaios e na rodagem. É uma construção que resulta disso tudo e o que acontece, penso eu, em qualquer processo de interpretação de qualquer ator ou atriz.
E o que há de si ali?
A personagem é feita por mim. uma atriz empresta o seu corpo, a sua voz, a sua imaginação para criar uma personagem que vista da perspetiva do público até pode parecer uma pessoa, os recursos são sempre seus. Tenho é algumas coisas em comum com a personagem, sou mãe e sou artista, concilio muitas coisas e, quando assim é, há um dinamismo e uma forma de estar que nos obriga a avançar, a não parar.
Será uma mulher em mudança de ciclo? Uma mulher a reinventar-se?
Acho que ela está a atravessar a tempestade o melhor que pode e consegue.
A perda que sofre é enorme e penso que depois de perder uma mãe ou um pai não se volta a ser igual ao que se era. Claramente há um ciclo que se inicia perante essa perda e aqui talvez possamos vislumbrar um pouco disso.
Muitos conhecem o seu trabalho no teatro. Este embate com o cinema o que lhe trouxe?
Trouxe-me conhecimento de uma nova linguagem como intérprete - a linguagem do cinema, que conhecia apenas como espectadora e não como atriz.
As bases de interpretação para mim são exatamente as mesmas. Fora isso não tem nada a ver. Representar com uma câmara é diferente de representar para uma plateia. Foi preciso fazer e experimentar e confiar na Susana e na restante equipa, nas pessoas que nos olham através daquela máquina e nos dizem o que devemos fazer e que depois vão juntar tudo aquilo numa grande panela e fazer um cozinhado impossível de prever.
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