Aviso prévio e bem-intencionado: o título deste texto pode ser enganador... De facto, o filme Irresistible (estreia TVCine, sábado) não é uma aventura de super-heróis. Nem de longe nem de perto. Estamos mesmo perante uma história que começa num tom de desconcertante realismo - sobre a eleição do mayor de Deerlaken, cidadezinha fictícia no estado do Wisconsin -, a pouco e pouco adquirindo os artifícios próprios de uma sátira política..A metáfora é tanto mais sugestiva quanto provém do próprio realizador de Irresistible, Jon Stewart, ex-apresentador de The Daily Show (Comedy Central), aqui a assinar a sua segunda longa-metragem para cinema. Diz ele que quando democratas e republicanos se interessam pelo processo eleitoral de Deerlaken e para lá enviam os seus estrategas políticos, o que acontece, sendo revelador dos mecanismos da cena política, tem qualquer coisa de Batman vs. Superman: "São dois titãs em guerra e as pessoas a perguntar se já repararam que estão a destruir todos os edifícios à sua volta...".DestaquedestaqueAtravés do brilhantismo dos seus atores, Jon Stewart não perde a oportunidade de caricaturar as versões mais grosseiras, ou mais politicamente corretas, dos conflitos masculino/feminino..Ainda em linguagem metafórica, ma non troppo, podemos dizer que Irresistible é um filme sobre uma América assombrada por uma clivagem brutal: de um lado, um país "interior", predominantemente conservador, que em cada ciclo eleitoral, de quatro em quatro anos, suscita a atenção efémera das grandes máquinas políticas; do outro, a lógica dominante dessas máquinas que, depois das eleições, abandonam o terreno, obrigando os cidadãos a reconstruir as ruínas do seu combate. Ou ainda como pergunta Jon Stewart, identificando o verdadeiro desencanto político: "Onde está o dinheiro? Como é que o dinheiro é aplicado?".A par de Stephen Colbert, Jon Stewart tem sido uma das personalidades televisivas com um discurso mais elaborado - e também mais severamente crítico - sobre a personalidade e as políticas de Donald Trump. Atualmente colabora com Colbert, na condição de produtor executivo de The Late Show (por vezes, participando no programa), devendo regressar à televisão em setembro, com um novo talk show, intitulado The Problem with Jon Stewart (Apple TV+)..Irresistible não é, de modo algum, uma mera "transcrição" das suas intervenções televisivas. Aliás, estamos perante um objeto que serve de prova das qualidades de Jon Stewart também como argumentista, mesmo se o filme tem alguma dificuldade em encontrar um desenlace consistente para as suas atribulações cómico-dramáticas. Seja como for, vale a pena chamar a atenção do espetador para o facto de o genérico final conter um breve e elucidativo diálogo com Trevor Potter, advogado que já presidiu à Comissão Eleitoral Federal, tendo fundado a Campaign Legal Central, organização sem fins lucrativos que se ocupa da análise do financiamento das entidades políticas e ética governamental..O motor da ação de Irresistible é a figura de Jack Hastings (Chris Cooper), ex-marine, proprietário rural, que na assembleia de Deerlaken faz um discurso sobre as eternas dificuldades de financiamento de uma população ignorada pelos decisores de Washington... O registo da sua intervenção chega à internet, torna-se viral e chama a atenção de Gary Zimmer (Steve Carell), consultor do Partido Democrata. Ainda na ressaca da vitória de Trump sobre Hillary Clinton, Zimmer vê em Hastings o candidato ideal para o cargo de mayor de Deerlaken; mais do que isso: um símbolo em potência de uma espetacular viragem política de âmbito nacional: "Ele é um democrata, mas ainda não sabe...".Zimmer é o Superman que, munido das mais sofisticadas técnicas de marketing político, chega para repor a utopia democrata no "coração" da América. Enfrenta o Batman republicano, isto é, Faith Brewster (Rose Byrne), duplo e fantasma capaz de rivalizar com a manha política e o oportunismo mediático de Zimmer - sem esquecer que, através do brilhantismo dos seus atores, Jon Stewart não perde a oportunidade de caricaturar as versões mais grosseiras, ou mais politicamente corretas, dos conflitos masculino/feminino..Irresistible chega-nos com algum atraso, como atrasado chegou ao público dos EUA. Rodado em abril/maio de 2019, foi um dos títulos com a estreia adiada devido à pandemia; acabou por ter um lançamento conjunto (salas + VOD) em junho de 2020, porventura atenuando algum do seu potencial impacto..Jon Stewart tivera a sua estreia cinematográfica com Rosewater - Uma Esperança de Liberdade (2014), sobre a saga de um jornalista iraniano acusado de espionagem e preso pelas autoridades do Irão (na sequência de uma entrevista dada ao próprio Jon Stewart, em The Daily Show). Com sobriedade - e contagiante humor, no caso de Irresistible -, o seu trabalho cinematográfico é, afinal, herdeiro de toda uma visão crítica do poder político que envolve a obra tutelar de Frank Capra (1897-1991) e filmes como Dr. Estranhoamor (1964), de Stanley Kubrick, ou Manobras na Casa Branca (1997), de Barry Levinson. A política mudou, a tradição resiste..dnot@dn.pt
Aviso prévio e bem-intencionado: o título deste texto pode ser enganador... De facto, o filme Irresistible (estreia TVCine, sábado) não é uma aventura de super-heróis. Nem de longe nem de perto. Estamos mesmo perante uma história que começa num tom de desconcertante realismo - sobre a eleição do mayor de Deerlaken, cidadezinha fictícia no estado do Wisconsin -, a pouco e pouco adquirindo os artifícios próprios de uma sátira política..A metáfora é tanto mais sugestiva quanto provém do próprio realizador de Irresistible, Jon Stewart, ex-apresentador de The Daily Show (Comedy Central), aqui a assinar a sua segunda longa-metragem para cinema. Diz ele que quando democratas e republicanos se interessam pelo processo eleitoral de Deerlaken e para lá enviam os seus estrategas políticos, o que acontece, sendo revelador dos mecanismos da cena política, tem qualquer coisa de Batman vs. Superman: "São dois titãs em guerra e as pessoas a perguntar se já repararam que estão a destruir todos os edifícios à sua volta...".DestaquedestaqueAtravés do brilhantismo dos seus atores, Jon Stewart não perde a oportunidade de caricaturar as versões mais grosseiras, ou mais politicamente corretas, dos conflitos masculino/feminino..Ainda em linguagem metafórica, ma non troppo, podemos dizer que Irresistible é um filme sobre uma América assombrada por uma clivagem brutal: de um lado, um país "interior", predominantemente conservador, que em cada ciclo eleitoral, de quatro em quatro anos, suscita a atenção efémera das grandes máquinas políticas; do outro, a lógica dominante dessas máquinas que, depois das eleições, abandonam o terreno, obrigando os cidadãos a reconstruir as ruínas do seu combate. Ou ainda como pergunta Jon Stewart, identificando o verdadeiro desencanto político: "Onde está o dinheiro? Como é que o dinheiro é aplicado?".A par de Stephen Colbert, Jon Stewart tem sido uma das personalidades televisivas com um discurso mais elaborado - e também mais severamente crítico - sobre a personalidade e as políticas de Donald Trump. Atualmente colabora com Colbert, na condição de produtor executivo de The Late Show (por vezes, participando no programa), devendo regressar à televisão em setembro, com um novo talk show, intitulado The Problem with Jon Stewart (Apple TV+)..Irresistible não é, de modo algum, uma mera "transcrição" das suas intervenções televisivas. Aliás, estamos perante um objeto que serve de prova das qualidades de Jon Stewart também como argumentista, mesmo se o filme tem alguma dificuldade em encontrar um desenlace consistente para as suas atribulações cómico-dramáticas. Seja como for, vale a pena chamar a atenção do espetador para o facto de o genérico final conter um breve e elucidativo diálogo com Trevor Potter, advogado que já presidiu à Comissão Eleitoral Federal, tendo fundado a Campaign Legal Central, organização sem fins lucrativos que se ocupa da análise do financiamento das entidades políticas e ética governamental..O motor da ação de Irresistible é a figura de Jack Hastings (Chris Cooper), ex-marine, proprietário rural, que na assembleia de Deerlaken faz um discurso sobre as eternas dificuldades de financiamento de uma população ignorada pelos decisores de Washington... O registo da sua intervenção chega à internet, torna-se viral e chama a atenção de Gary Zimmer (Steve Carell), consultor do Partido Democrata. Ainda na ressaca da vitória de Trump sobre Hillary Clinton, Zimmer vê em Hastings o candidato ideal para o cargo de mayor de Deerlaken; mais do que isso: um símbolo em potência de uma espetacular viragem política de âmbito nacional: "Ele é um democrata, mas ainda não sabe...".Zimmer é o Superman que, munido das mais sofisticadas técnicas de marketing político, chega para repor a utopia democrata no "coração" da América. Enfrenta o Batman republicano, isto é, Faith Brewster (Rose Byrne), duplo e fantasma capaz de rivalizar com a manha política e o oportunismo mediático de Zimmer - sem esquecer que, através do brilhantismo dos seus atores, Jon Stewart não perde a oportunidade de caricaturar as versões mais grosseiras, ou mais politicamente corretas, dos conflitos masculino/feminino..Irresistible chega-nos com algum atraso, como atrasado chegou ao público dos EUA. Rodado em abril/maio de 2019, foi um dos títulos com a estreia adiada devido à pandemia; acabou por ter um lançamento conjunto (salas + VOD) em junho de 2020, porventura atenuando algum do seu potencial impacto..Jon Stewart tivera a sua estreia cinematográfica com Rosewater - Uma Esperança de Liberdade (2014), sobre a saga de um jornalista iraniano acusado de espionagem e preso pelas autoridades do Irão (na sequência de uma entrevista dada ao próprio Jon Stewart, em The Daily Show). Com sobriedade - e contagiante humor, no caso de Irresistible -, o seu trabalho cinematográfico é, afinal, herdeiro de toda uma visão crítica do poder político que envolve a obra tutelar de Frank Capra (1897-1991) e filmes como Dr. Estranhoamor (1964), de Stanley Kubrick, ou Manobras na Casa Branca (1997), de Barry Levinson. A política mudou, a tradição resiste..dnot@dn.pt