Basil da Cunha: “Gostava que surgissem mais realizadores vindos dos bairros”
PAULO SPRANGER/Global Imagens

Basil da Cunha: “Gostava que surgissem mais realizadores vindos dos bairros”

Um cineasta que vem do bairro e que em 'Manga d'Terra' não desiste de filmar um lugar com cultura e identidade. Depois de 'Até Ver a Luz' e 'O Fim do Mundo', conseguiu de novo lugar num festival de classe A, o de Locarno. Em Portugal acabou de receber o prémio Sophia de melhor curta-metragem, '2720'.
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Este filme nasce pela música, certo?
Sim, foi filmar a música. Sou fã de Bob Fosse [realizador de Cabaret e All That Jazz], mas não gosto muito de musicais. Enfim, queria fazer algo diferente, com música caseira, com “lives”. No início nem era para ser uma longa, mas sim uma espécie de videoclipe com umas sequências antes e depois. De repente, tornou-se uma curta mas a curta já não era bem uma curta...Esticámos, esticámos e esticámos e ficou isto. A ideia era também filmar o fora de campo dos outros, neste caso as mulheres aqui da Reboleira. Antes já tinha filmado muito os rapazes em filmes muito noturnos. E filmava rapazes porque cheguei cá com 20 anos e comecei a lidar mais com rapazes da minha idade...Andávamos muito juntos à noite. Agora quis mostrar o contra-campo, as mulheres. Esta é uma comunidade matriarca. Matriarcas fortes!

Neste filme são as mulheres quem revela mais cabeça.
Sim, o power está com elas. Elas é que seguram a barra. Às seis da manhã são elas quem vemos a ir para o trabalho e antes ainda deixam os filhos na creche. Esta personagem protagonista é uma mulher forte, vencedora.

Os seus filmes têm viajado muito a nível de circuito dos festivais. Este Manga d'Terra teve mesmo honras de competição no famoso Festival de Locarno. Como as pessoas lá fora reagem quando descobrem este bairro às portas de Lisboa como uma bolha de África?
O bom é que todos sentem a proximidade com as pessoas. Há muitas pessoas que ficam com vontade de vir cá, querem ultrapassar aquela barreira e o preconceito criados pela CMTV e outros media. Subitamente, as pessoas estão a ter uma visão de dentro e apanham com esta comédia da vida, magia e poesia.

Mas há também tragédia.
Eu sinto mais comédia, sobretudo neste filme. Depende de onde o olhar vem...Por exemplo, sinto que a classe média-alta não consegue ultrapassar aquela barreira. E há sempre o olhar condescendente, sobretudo da parte daquela esquerda caviar. Ou então, no caso da direita ou extrema direita, um certo horror. Em certos sítios, acharam Manga d'Terra muito pesado...

Deve levar com a acusação de estar a explorar a miséria humana...
Sim, sim...mas nunca me disseram que fazia porno-pobreza. Já vivo cá há muitos anos. Quer este quer a curta-metragem 2720 mostram sobretudo um sistema de solidariedade.

E o filme chega agora em que mais uma vez um dos temas destes dias é a questão do racismo e dos problemas das migrações entre nós.
Em cada filme que faço quero que as personagens façam parte da História deste país. E são pessoas que não estão representadas no Parlamento, nos telejornais ou nas telenovelas. Os “black” têm histórias fixes para contar. Há pessoas que não entendem que isto é Portugal! Este é o país que conheço! Nunca vive cá sem ser na Reboleira. Acho que é um Portugal lindo e que me acolheu como nunca antes fui acolhido. E nunca aprendi tanto como neste bairro cujo espaço de tempo é outro. É tudo calmo mas também com muito acontecimento ao mesmo tempo.

Nunca se sentiu um corpo estranho por ser louro, de olhos azuis?
Nada, sempre tranquilo! O meu pai é do norte e em Aveiro tive mais dificuldade de integração... Sinto-me melhor aqui do que em qualquer festival de cinema ou mesmo na Suíça. Já fui ao Festival de Cannes umas quatro vezes e uma vez, quando estava para entrar na sala para mostrar o meu filme, apanhei com as pessoas a querer dar-me o bilhete – pensam que sou o porteiro. E, nas festas, muitas vezes, sou barrado, isso diz muito... Ok, eu sei, a minha pinta não ajuda. É o meu estilo, vou fazer o quê?! Não vou ficar hipster. A sério, acho super importante o cinema ter várias vozes. Até acho que o panorama deveria ser mais diversificado. Gostava que surgissem mais realizadores vindos dos bairros e não só para fazer “cinema de bairro”. Que façam filmes de amor, de terror, thrillers! Ou de zombies. Era interessante outras vozes para um outro cinema. Quero também fazer passar a mensagem que os meus atores não são meus, são de todos! Pensa-se que o Ventura é do Pedro Costa... Não!! Curtia vê-lo numa novela ou num filme de terror. Sabe, muitas vezes associam os meus atores aos dele mas eu acho o nosso cinema completamente diferente. Há tão poucos papéis para atores negros e os poucos que há vão sempre para os mesmos. Às vezes, o papel é de um cabo-verdiano mas, depois, dão para um angolano ou um moçambicano porque fez 36 novelas ou está agenciado... Era fixe virem cá e eu nem cobro percentagem – fico agente dos meus atores! Eles são todos bons.

Os seus atores são tão bons que as pessoas esquecem-se que são atores.
Eles têm mesmo trabalho de interpretação. Repito sequências umas quinze, vinte vezes. Nas sequências musicais agora é que não me estiquei tanto.

Mas com Cabo Verde acaba por ter uma grande afinidade. É como se fosse um caso de amor?
Sem dúvida, eu e a Eliane estivemos lá há pouco tempo e já nem queríamos regressar. Se na Reboleira um dia é mais longo, em Cabo Verde vive-se quase um mês num mesmo dia.

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