Bárbara Virgínia, um mistério do cinema português
Neste ano em que chegaram às salas documentários como As Mulheres Fazem Cinema, de Mark Cousins, e Be Natural - A História Nunca Contada de Alice-Guy Blaché, de Pamela B. Green, ambos objetos que homenageiam e dão visibilidade a uma narrativa omissa do cinema no feminino, assente nas suas protagonistas e pioneiras atrás da câmara, há qualquer coisa no ar que dita a importância de recuperar a memória da portuguesa Bárbara Virgínia (1923-2015). A propósito dos 75 anos da estreia da sua primeira e única longa-metragem, Três Dias sem Deus (no Cinema Ginásio em Lisboa, a 30 de agosto de 1946), o Festival IndieLisboa apresenta hoje, pelas 19h00, na Cinemateca, o fragmento de 26 minutos que resta do original, numa cópia digital restaurada pela própria Cinemateca/ANIM para a ocasião.
Não chega a meia hora e é tudo o que se pode ver - apenas ver, porque também a banda de som se perdeu - de uma película que teria 102 minutos. Um filme de ficção que conta a história de uma jovem professora primária, Lídia, recém-chegada a uma aldeia do interior do país, onde acaba envolvida no ambiente obscuro da mansão do pai de um dos seus alunos, por sinal, o senhor do monte, temido pelos aldeões que o acusam de ter tentado matar a esposa e manter um pacto com o demónio... O título Três Dias sem Deus vem deste detalhe: quando Lídia chega, o médico e o padre da aldeia informam que têm de se ausentar, e essa ausência dá origem à superstição dos populares.
A jovem professora é interpretada pela própria Bárbara Virgínia, que tinha 22 anos, e o argumento adaptado de um suposto romance de Gentil Marques, Mundo Perdido. Dizemos suposto porque não existe qualquer registo público deste livro, o que leva a presumir que não terá sido editado. É, tal como o filme, uma referência "fantasma" de algo que outrora teve corpo.
E se porventura Três Dias sem Deus, essa primeira longa-metragem realizada por uma mulher em Portugal, surge como uma evocação vaga, devido à inexistência de grande parte da película (algo que se deve sobretudo ao circuito limitado do filme e ao número reduzido de cópias disponíveis), o facto é que integrou, ao lado de Camões, de Leitão de Barros, a participação portuguesa na primeiríssima edição do Festival de Cannes, que teve lugar nesse ano de 1946. Uma participação feminina, importa referir, envolta em má crítica e paternalismos.
O filme não se parece com nada do cinema que então se fazia em Portugal. A sua estética gótica, visível no fragmento existente, remete para adaptações clássicas americanas da altura, como Rebecca (1940), de Hitchcock, e Jane Eyre (1943), de Robert Stevenson, inscrevendo-se na "perspetiva do cinema de género, sendo que o género em causa é o cinema gótico, o filme de suspense ou de mistério", sublinha o programador Ricardo Vieira Lisboa, num texto disponível no site À Pala de Walsh, sobre o caso Bárbara Virgínia. É ele quem se tem dedicado à investigação do mistério desta mulher e desta obra.
Bárbara Virgínia destacou-se na Emissora Nacional, com a interpretação de trechos de ópera e declamação de poemas, tendo passado pelo teatro e pela revista à portuguesa, antes de se estrear no cinema como atriz, no filme Sonho de Amor (1945), de Carlos Porfírio, a que se seguiu Três Dias sem Deus. Depois deste, não mais voltaria a realizar. A sua carreira resumir-se-ia à rádio e a alguns recitais. Foi num deles que um empresário brasileiro a convidou a partir para o Brasil. E por lá ficou.
A abrir a sessão de Três Dias sem Deus há uma curta-metragem de Clara Cullen, Lo Que no Se Ve ni Se Oye, sobre a sua descoberta que a bisavó foi a primeira mulher realizadora na Argentina. Sim, porque ainda há muito para tirar da penumbra nesta história das mulheres atrás da câmara...
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