Ascensão e queda de Ellen DeGeneres: a simpatia afinal era a fingir
Música, aplausos, gargalhadas. Ellen a dançar por entre o público, convidados famosos a sorrirem, histórias emocionantes de gente comum e no final sempre aquele apelo: "Sejam simpáticos com os outros." Durante anos, a comediante e atriz Ellen DeGeneres foi o grande exemplo da felicidade e da solidariedade na televisão com o seu programa The Ellen DeGeneres Show. O exemplo da sua própria carreira - uma mulher gay que interpreta o primeiro papel protagonista de uma lésbica na TV - serviu como modelo aspiracional de empoderamento pessoal. Ali estava uma mulher que desafiava as convenções de uma sociedade conservadora e que, apesar disso, conseguia ser o maior sucesso do horário diurno do canal norte-americano NBC, com uma audiência diária de mais de 4,2 milhões de espectadores.
Mas, após mais de 16 anos no ar e com um total de 61 Emmys (incluindo vários prémios para melhor talk show e para melhor programa de entretenimento), parece que o show de Ellen DeGeneres tem os dias contados.
O que aconteceu?
Tudo começou com um tweet do comediante Kevin T. Porter, que, perante a ameaça da covid-19, relembrava a necessidade de sermos todos mais simpáticos uns com outros, tal como Ellen pedia. Mas, logo a seguir, mudava de tom para afirmar que DeGeneres era "notoriamente uma das pessoas mais cruéis do mundo", abrindo a porta a uma série de histórias (não corroboradas) sobre DeGeneres ser uma pessoa fria, rude e até mesmo mesquinha com os fãs, com os trabalhadores da indústria audiovisual e até com os seus convidados famosos.
As gravações do programa tinham sido suspensas devido à pandemia de covid-19. No regresso aos ecrãs, a 7 de abril, a transmitir de sua casa, DeGeneres disse aos espectadores que queria voltar a fazer o seu programa como antes "o mais rapidamente possível". A anfitriã disse especificamente que queria voltar "pela equipa ": "Amo-os e sinto saudades deles, a melhor coisa que posso fazer para apoiá-los é manter o programa no ar."
Mas, pouco depois, a Variety noticiava que os cerca de 30 funcionários dos estúdios do programa de Ellen tinham ficado quase um mês sem receber qualquer informação oficial sobre o pagamento dos seus ordenados e que quando voltaram a receber tinham reduções na ordem dos 60%. Os empregados sentiam-se abandonados pela sua entidade patronal - ninguém lhes atendia o telefone ou dava qualquer justificação.
A imagem de Ellen DeGeneres, de rosto sorridente, apelando à simpatia e à solidariedade, não coincidia com a de uma patroa que, num momento de crise, não se preocupava com os seus funcionários. Foi o que bastou para que várias pessoas surgissem nas redes sociais a criticar a sua hipocrisia. As principais acusações vieram precisamente dos funcionários e ex-funcionários do programa que, anonimamente, se queixaram de haver racismo, sexismo e intimidação no estúdio. A maioria culpou os produtores executivos e outros responsáveis de topo pela toxicidade quotidiana, mas um ex-funcionário disse que, em última análise, é o nome de Ellen que aparece no programa, portanto "ela de facto tem de assumir a responsabilidade" pelo ambiente de trabalho. Todos concordaram que Ellen via estas coisas acontecer sem nada fazer para o contrariar, vivendo como que numa bolha, sem estabelecer de facto uma ligação com os elementos da equipa.
"Se Ellen quer ter um programa com o seu nome, ela tem de se envolver mais e ver o que está a acontecer", afirmou um funcionário citado num polémico artigo publicado a 16 de julho no BuzzFeed. A publicação falou com um atual funcionário e dez antigos funcionários do programa e aquilo que eles dizem não é bonito. "Essa treta de 'ser gentil' só acontece quando as câmaras estão ligadas", disse um ex-colaborador. Houve quem se queixasse de ter sido despedido depois de tirar uma baixa médica ou pedir uma licença para ir ao funeral de um familiar. Alguns funcionários dizem que receberam ordens para não falar com Ellen DeGeneres caso se cruzassem com ela. Uma funcionária afro-americana queixou-se de racismo e várias mulheres confirmaram que os homens recebiam ordenados superiores para funções idênticas.
Entretanto, Tom Majercak, o guarda-costas de DeGeneres na cerimónia dos Óscares de 2014, contou que se sentiu humilhado pela comediante. "Ellen foi a única pessoa com quem trabalhei - e já trabalhei com várias celebridades - que nunca teve tempo para me dizer um olá", afirmou Majercak. Ellen ignorou-o pura e simplesmente, agiu como se ele não existisse - ou como se ela fosse superior a ele.
Nos últimos dias, também Tony Okungbowa, antigo DJ do The Ellen DeGeneres, Show confirmou publicamente a "toxicidade do ambiente" no estúdio.
Numa declaração conjunta ao BuzzFeed News, os produtores executivos do programa, Ed Glavin, Mary Connelly e Andy Lassner, afirmaram que levam as declarações dos funcionários "muito a sério".
"Ao longo de quase duas décadas, com três mil episódios feitos e dando emprego a mais de mil funcionários, esforçámo-nos para criar um ambiente de trabalho aberto, seguro e inclusivo", disseram. "Estamos realmente com o coração partido e lamentamos saber que alguma pessoa na nossa produção teve uma experiência negativa. Não somos assim, nem foi essa a missão que Ellen estabeleceu para nós." Os produtores assumiram a total responsabilidade por todas as situações que possam ter contribuído para um mau ambiente de trabalho.
E, enquanto estas coisas iam sendo ditas, Ellen DeGeneres não veio a público para assumir qualquer responsabilidade, para dar algum tipo de explicação ou para pedir desculpa. Pelo contrário, nas suas publicações nas redes sociais Ellen comparou a quarentena na sua mansão com paredes de vidro a estar na prisão - um lamento que noutro momento poderia passar incólume foi, neste contexto, visto como exemplo da falta de sensibilidade da estrela.
Foi, então, a vez de começar a olhar para alguns dos segmentos do programa com uma atenção redobrada. As críticas voltaram-se também para o modo como Ellen DeGeneres faz humor, fazendo piadas acerca dos seus convidados ou usando a câmara oculta para gozar com algumas pessoas. Houve quem recordasse que Ellen era, afinal, amiga de George Bush. E houve também quem lembrasse o ambiente tenso numa entrevista de Ellen à atriz Dakota Johnson que, ao contrário do que é habitual neste género de programas, respondeu à letra à comediante.
A 27 de julho, a Warner Media e a Telepictures, responsáveis pela produção do talk show, anunciaram que está em curso uma investigação interna, conduzida pelo departamento de recursos humanos da Warner Media em conjunto com elementos de uma auditora externa, que irá ouvir os testemunhos de todos os profissionais que passaram pela produção do programa.
E quando se julgava que a situação não poderia piorar, eis que, a 31 de julho, um novo artigo do site Buzzfeed revela testemunhos de 36 ex-funcionários, homens e mulheres, que acusam os produtores executivos Kevin Leman, Ed Glavin e Jonathan de Norman de assédio sexual e comportamento impróprio. Algumas das testemunhas sugeriram que DeGeneres sabia o que se passava, mas preferia ignorar o assunto: "Para alguém que está tão envolvido no programa e no aspeto criativo, e tendo estado nessas reuniões com ela, é muito difícil imaginar que ela não ouviu os piropos." Num outro artigo publicado a 4 de agosto, uma antiga funcionária afirma que Ellen não só sabia como incentivava aquele tipo de comportamentos - intimidação, racismo, sexismo, assédio.
Poucas horas antes de o primeiro artigo sobre abusos sexuais ser publicado, a apresentadora enviou, finalmente, uma carta aos seus funcionários na qual lamentava todas as situações que tinham até aí sido relatadas: "No primeiro dia do nosso programa, na nossa primeira reunião, disse a todos que The Ellen DeGeneres Show seria um lugar de felicidade - ninguém jamais levantaria a voz e todos seriam tratados com respeito. Obviamente, isso não aconteceu e estou muito triste por sabê-lo", escreveu DeGeneres.
"Não poderia ter o sucesso que tive sem todas as vossas contribuições", disse a apresentadora, dirigindo-se aos funcionários. "O meu nome está no programa e eu assumo a responsabilidade por tudo o que fazemos. Juntamente com a Warner Bros., iniciámos imediatamente uma investigação interna e estamos a tomar medidas para corrigir os problemas. Como crescemos exponencialmente, não tenho sido capaz de ficar a par de tudo e dependo de outros para cumprirem determinadas funções como eles sabem que eu gostaria que fosse feito. Claramente, alguns não sabiam. Isso agora vai mudar e estou empenhada em garantir que isto não aconteça novamente."
Logo a seguir, a Warner Media confirmou que haveria algumas mudanças na direção de produção do programa. "A Warner Bros. e Ellen DeGeneres estão comprometidos em garantir um local de trabalho baseado no respeito e na inclusão. Estamos confiantes de que estas medidas nos levarão no caminho certo", lia-se no comunicado.
Enquanto algumas celebridades, como Portia de Rossi (mulher de Ellen), Nacho Figueras, Katy Perry, Diane Keaton, Tyrese Gibson, Ashton Kutcher, Kevin Hart, Jerry O'Connell, Alec Baldwin e Jay Leno têm erguido a voz para defender a apresentadora, outros, como os atores Brad Garrett e Lea Thompson, afirmaram nas redes sociais que o comportamento de Ellen era "do conhecimento de todos".
Nos últimos dias, uma campanha com a hashtag #ReplaceEllen surgiu nas redes sociais, sobretudo no Twitter, e, segundo as fontes contactadas pela US Weekly, Ellen DeGeneres poderá mesmo sair do ar. A verdade é que será muito difícil a Ellen, atualmente com 62 anos, sobreviver a esta polémica: é que se, por um lado, existem as acusações contra a sua equipa, por outro lado existe um descontentamento do público que não lhe perdoa o facto de ela lhes ter mentido e ter apregoado a simpatia e a solidariedade quando, alegadamente, não agia em consonância. A imagem de Ellen foi ferida naquilo que era a sua essência. Isso é algo que os fãs não lhe perdoam. E para o canal de televisão esse é um problema muito mais difícil de ultrapassar, pois não se resolve com a demissão dos produtores nem com um simples pedido de desculpas.