Objeto fabricado para bater forte em espectadores com tendência para o “team” do coração quebrado...
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As virtudes do coração quebrado

Mais outro filme inflacionado pelo “hype” do novo cinema independente americano. Vidas Passadas, de Celine Song, é uma história de amor sobre raízes coreanas e o sonho americano. Conquista mas não arrebata. Está nomeado ao Óscar de melhor filme.
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Foi o primeiro frontrunner da temporada dos prémios, logo em janeiro do ano passado quando saiu do Festival Sundance com um consenso crítico fortíssimo da crítica americana. Depois teve uma campanha de marketing da A24 com a cirurgia habitual, capaz de capitalizar a presença na competição do Festival de Berlim e os degraus sucessivos da promoção no circuito das galas dos críticos e das associações. Agora, curiosamente, na reta final, algum desgaste: chega aos Óscares apenas com duas nomeações (melhor filme, é certo...) mas com uma ausência notada na categoria de melhor realização e nos atores, em especial a maravilhosa Greta Lee, depois deste filme está posicionada para ser uma nova estrela em Hollywood. Ou seja, marca o ponto mas corre realmente por fora nas previsões da grande noite de 10 de março. Vidas Passadas não será, assim, um novo Minari, de Lee Isaac Chung, o outro cineasta de origem coreana que está a conseguir fazer uma ponte cultural entre as histórias asiáticas na experiência americana, embora ambos filmes consigam abrir uma janela de oportunidade para essa ideia de intercomunicação cultural de dois povos.

In-Yun é um conceito coreano que tem um pressuposto algo budista que faz com que as pessoas acabem por se cruzar em diferentes vidas em diferentes tempos e existências. Uma teoria de destinos com alguma coisa de reencarnação, digamos assim. É esse o ponto de partida desta história de amor de Celine Song, cineasta e argumentista que acredita num ideal de cinema romântico. Místico, mas non tropo, este é um filme que acredita no poder de um teorema romântico. Um teorema que anda à volta de podermos voltar a apaixonar-nos pelo nosso primeiro amor ou de nunca percebermos o que o passado ainda nos reserva no presente.

O triângulo amoroso é o formato para encenar a coisa e a partir daí discorre-se sobre corações em luto, fim da paixão, relações online, saudades da pátria e a possibilidade de podermos amar em plural. Questões abordadas com uma calma que não se confunde com moleza, questões que são exploradas com uma sensibilidade tão zen como feminina. É esse o charme envergonhado de uma história de amor que é mais simples do que se pensava: um casal de crianças namorados separa-se em Seul devido à emigração. Anos depois, Nora está casada em Nova Iorque e vive da escrita, enquanto Hae está a acabar o serviço militar obrigatório. Graças a uma mensagem nas redes sociais combinam um encontro em Nova Iorque. Quando se reunem percebem que há algo que os liga, algo que os afeta por completo.

Celine Song, conhecida por ter escrito o argumento da série A Roda do Tempo, tem aquela habilidade de narrar este encontro amoroso com um peso realista que não anula a sensibilidade romântica. E tem sobretudo a capacidade de no jogo das suposições remeter a pergunta ao espectador – nesse sentido é quase um questionar sobre o efeito que uma relação falhada do passado pode ter em cada um de nós.

Tal como o mais completo Minari (as comparações com ambos filmes são mesmo inevitáveis),  de Lee Isaac Chung, fala do sentimento dos emigrantes coreanos nos EUA. Uma saudade que se pressente autêntica. Song parece estar a querer fazer uma novo clássico romântico à imagem de um As Pontes de Madison County, embora os moldes sejam bastante ancorados numa metodologia do chamado “filme indie”. Lembrando o aforismo popular, o “primeiro amor nunca nos larga”, é composto num caso de afetos e atração subterrânea. Um romance tão platónico como “impossível” gerido com uma ternura no limiar do místico e aludindo a princípios budistas que sugerem práticas de reencarnação e outros sinais do destino relacionado com as “vidas passadas” do título.  

A realizadora tem claramente uma admirável serenidade a construir os tempos dos diálogos e a nunca sair dos eixos do melodrama romântico mais subtil. E filma o que sabe: as memórias de Seoul e a Nova Iorque que é sua por um olhar que escapa ao postal turístico, inclusive quando os dois quase amantes coreanos visitam a Estátua da Liberdade. Por ser “quase” há algo de transformador neste encenar de uma atração que se confunde com identificação cultural. Estará esta mulher a tentar lutar contra uma apropriação cultural americana? O seu gesto de atração pelo amor de infância é um ato de resistência inconsciente a nível de identidade? No final de contas, a equação do que é ser americano-coreano está algures aqui....

Em vez de ser um adeus à linguagem entre as diferenças culturais e de língua do Inglês e Coreano, Past Lives é um olá à linguagem, tecido com uma verdade íntima muito própria das personagens. Mesmo sendo prudente explicitar as fragilidades de gestão narrativa do filme, parte da sua beleza passa bastante por uma nostalgia romântica que é perfeitamente identificável e que devolve ao “filme romântico” um efeito de “blues”, de balada magoada. As nossas raízes levam-nos para estados de alma que vão desembocar na génese da paixão e da atração. É pena que Vidas Passadas não seja o grande filme que prometia tanto...

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