"As pessoas constroem o relato das glórias de Roma de acordo com as necessidades e os preconceitos da sua época"
Neste Roma: História da Cidade Eterna, o britânico Ferdinand Addis fala sobre a Roma cidade-Estado e a sua evolução para o Império Romano, também sobre a urbe meio abandonada na Idade Média, o esplendor recuperado por obra dos papas durante o Renascimento, a escolha para capital de Itália e ainda o fascínio que sempre causa nos cineastas.
Recorda-se da sua primeira visita a Roma e o impacto que a cidade lhe causou?
A primeira vez que fui a Roma foi mais ou menos por acidente. Eu era muito jovem - apenas um adolescente vagueando pela Europa com dois amigos. Estávamos sem dinheiro e sem muita ideia do que fazer, e depois de apanhar uma boleia de cargueiro de Valência para Salerno, acabámos em Roma pelo motivo mais antigo de todos: porque todos os caminhos levam até lá. Foi uma viagem nada romântica. Ficámos num albergue sombrio perto da estação Termini. Comemos sanduíches numa rotunda perto das termas de Caracala. Não sabíamos nada. Apenas caminhámos ao acaso vendo aonde os nossos pés nos levavam. Houve um momento, porém, que me impressionou profundamente: estávamos a caminhar ao longo do Tibre, descendo até à beira da água, e encontrámos um homem a pescar com um simples fio com anzol. Poderia ter saído de qualquer século da história de Roma, mais ou menos. E quando nos virámos, vimos que tínhamos chegado à abertura do antigo esgoto de Roma - a Cloaca Maxima. E esta foi a primeira vez que senti a cidade em si, a cidade como um organismo, muito velho, maduro e em decadência, mas ainda intenso e poderosamente vivo. Foi uma sensação que nunca mais esqueci.
O nome da cidade deu nome ao império. Isso é algo quase único, certo?
Acho que não podemos dizer que é único, exatamente. A maioria dos grandes impérios mesopotâmicos - pense no Império Babilónico ou no Império Assírio - são lembrados pelos nomes das suas cidades fundadoras. Mas é definitivamente justo dizer que o Império Romano se apegou às tradições da sua cidade por um tempo notavelmente longo. Por um século e meio, desde a Segunda Guerra Púnica até o colapso da República, Roma conquistou grande parte do mundo mediterrâneo com instituições que surgiram para servir uma simples cidade-Estado. E mesmo após o colapso da República, uma veneração ostensiva das velhas tradições da cidade foi uma parte muito importante da propaganda de Augusto e posteriormente imperial.
Quando falamos do Império Romano é possível dizer que os dias mais gloriosos foram durante os tempos republicanos?
Depende do que se entende por glorioso! Se nos interessa o êxito militar então sim, o período republicano é o período das batalhas mais duras e decisivas, e posteriormente de maior expansão. Do ponto de vista literário, as pessoas costumam apontar a Era de Augusto como superior. Mas com a mais recente geração de estudiosos viu-se um grande ressurgimento do interesse na chamada "antiguidade tardia". Mas temos que ter cuidado com todas essas avaliações. Uma coisa impressionante sobre Roma é o quão flexível ela tem sido como fonte de autoridade e significado para as civilizações posteriores olhando para trás. As pessoas veem em Roma o que querem ver e constroem o seu relato das glórias de Roma de acordo com as necessidades e preconceitos da sua própria época.
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O historiador britânico Ferdinand Addis.
Júlio César merece toda a sua fama, provavelmente como o mais famoso de todos os romanos?
Esta é uma pergunta difícil, mas acho que não. Os seus feitos foram realmente impressionantes e ele era obviamente um homem de inteligência, energia e ambição, mas se ganhou um lugar como o mais famoso, e às vezes o mais admirado, de todos os romanos, é porque ele foi perspicaz o suficiente para escrever o livro com a história das suas próprias realizações e teve sorte suficiente para que este tenha sobrevivido. O seu De Bello Gallico é uma obra notável, mas não devemos esquecer que é notável justamente como obra de propaganda.
Roma como capital do Cristianismo depois de ser capital do Império Romano era uma inevitabilidade?
Não creio que existam muitas inevitabilidades na história! Mesmo o surgimento do cristianismo como religião imperial não era inevitável. Havia outros cultos que poderiam ter ocupado o seu lugar. E como centro cristão, Roma sempre teve rivais: Constantinopla, Avinhão, o Sacro Império Romano. Acho que é fácil olhar para Roma hoje e pensar que a grandeza sempre foi o seu destino, mas houve momentos em que a cidade esteve muito perto de ser completamente abandonada.
Como descreve a Roma dos tempos medievais? Era uma cidade diferente das outras do continente, pelo tamanho, organização, desenvolvimento urbano, ou era uma cidade decadente comparando com Paris ou Londres?
Roma foi excecional na Idade Média pela diferença entre o seu passado e o seu presente. Os romanos medievais viviam entre as ruínas de uma cidade que abrigara uma população cem vezes maior. Eles apascentaram rebanhos em palácios abandonados e ergueram fortalezas em monumentos antigos ou sob os arcos do Coliseu. Era também uma cidade mais turbulenta do que outras capitais europeias - uma cidade onde o poder era frequentemente contestado de forma violenta. Os bairros eram muito espalhados. Pode-se imaginar quase uma dispersão de cidades ou aldeias rivais, unidas apenas pelo nome e pela ideia de Roma, e pela consciência compartilhada de um grande passado, vagamente compreendido, mas sempre trazido à mente pelas melancólicas ruínas.

A Capela Sistina, no Vaticano, relembra que os papas também deram um grande contributo para a glória de Roma.
© AFP
Durante o Renascimento, Roma teve um papel essencial ou estar sob o domínio papal foi uma desvantagem em termos de vanguarda cultural?
Roma teve um papel essencial na Renascença, que sucessivos papas encorajaram e promoveram ativamente. Por um lado, toda a ideia de um "renascimento" ou "redescoberta" dos ideais clássicos ajudou a reforçar as reivindicações de autoridade de Roma contra os rivais europeus. A produção artística em Roma foi maciçamente impulsionada pelo patrocínio de papas e cardeais, que atraíram artistas de toda a Europa. E, claro, muita da grande arte do renascimento foi motivada religiosamente. As obras-primas de Michelangelo no Vaticano existem não apesar da Igreja, mas por causa dela. Acho que hoje as pessoas estão acostumadas a pensar na Igreja Católica como uma força essencialmente conservadora, mas nem sempre foi assim! Para sobreviver às lutas políticas e ideológicas do início da Europa moderna, a igreja muitas vezes teve que se adaptar e inovar.
Roma como capital da Itália reunificada no século XIX foi uma escolha consensual?
Eu não diria que houve um consenso, exatamente. Urbes como Nápoles, Turim e Milão eram cidades esplêndidas com longas histórias como capitais de seus próprios estados, e cada uma delas esperava ser reconhecida como a capital da nova Itália. Mas Roma era a única cidade cuja história era suficientemente impressionante para anular as reivindicações conflitantes de lealdade regional. O único modelo disponível para um novo nacionalismo italiano era o Império Romano.
Por que Roma é tão atraente no cinema? Mesmo hoje!
É uma cidade incomparavelmente bela! Mais do que isso, é uma cidade que oferece o tipo de contraste dinâmico que os cineastas adoram: grandeza e sordidez, o antigo e o novo, o natural e o artificial. E Roma, embora antiga, ainda é tão cheia de vida: as velhas paredes em ruínas estão iluminadas com flores silvestres; o céu está cheio de pássaros; as ruas fervilham de gente. Poderíamos passar cem anos lá e a cada dia veríamos e sentiríamos algo novo.

O cinema continua fascinado pela beleza da cidade. E vale a pena ver e rever La Dolce Vita de Fellini.
Acha que fora dos países latinos Roma ainda é vista como uma espécie de centro do mundo?
Acho que não. Acho que algumas pessoas veem Roma como uma espécie de fóssil. Um gigantesco museu ao ar livre, preservado para seu prazer. Para mim, isso é uma pena. Uma das coisas que eu queria fazer com o livro era mostrar que Roma ainda importa, e que os conflitos e contradições que Roma incorpora ainda são importantes para todos nós enfrentarmos.
Como descreve o fascínio por Roma na Grã-Bretanha, não um país latino, mas apesar de tudo uma parte do antigo Império Romano?
Acho que, como todos os impérios anteriores, a Grã-Bretanha às vezes usou Roma como modelo de imitação. Ao mesmo tempo, como país protestante, a Grã-Bretanha costuma ver Roma como um modelo negativo - um símbolo de tudo o que é corrupto e ultrapassado. Os turistas britânicos que visitavam Roma no século XIX costumavam ser arrebatados pelos resquícios do passado glorioso de Roma e enojados pela atual decadência da época. Parte dessa tensão persiste hoje: Roma representa ideias e ideais que são rejeitados e admirados.
Consegue sugerir um filme e um romance sobre Roma?
Um romance que adorei - não muito conhecido - é The Blood of the Martyrs, escrito por uma autora escocesa, Naomi Mitchison, em 1939. É um romance que se envolve de forma muito criativa o passado romano, ao mesmo tempo em que tem muito do seu próprio tempo - um exemplo perfeito do tipo de fantasia histórica que Roma sempre inspirou. Quanto aos filmes, para mim, Fellini não tem igual. La Dolce Vita é uma obra-prima, vale a pena ver e rever. Mas o filme dele que fala mais diretamente ao meu espírito é Le Notti di Cabiria - comovente, ambíguo e belo, como a própria Roma
leonidio.ferreira@dn.pt
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