As mulheres portuguesas vistas por Maria Lamas
A nossa vida é muito escrava”, admitiram, provavelmente num suspiro resignado, várias mulheres à escritora e jornalista Maria Lamas, quando, no final da década de 1940, esta se fez ao caminho e se pôs a inquirir como viviam as suas compatriotas, no campo como nas cidades, no interior como à beira-mar. Logo na abertura da obra As Mulheres do Meu País, escreve a autora: “A nossa vida é muito escrava. Todas se exprimem assim, tal-qualmente ou por outras lavras, conforme lhes é usual. O sentido, porém, é sempre o mesmo, como arrastado é sempre o seu viver, na serra, na lezíria, à beira-mar ou na charneca ressequida e sem fim.”
Parte das fotografias que documentam esta arrepiante constatação podem ser vistas, desde ontem, junto à biblioteca de arte de Fundação Calouste Gulbenkian. Passados mais de 75 anos sobre o início da publicação em fascículos de As Mulheres do Meu País, esta exposição, com a curadoria de Jorge Calado, apresenta, pela primeira vez em Portugal, a obra fotográfica de Maria Lamas (1893–1983), jornalista e escritora, pedagoga e investigadora, tradutora e fotógrafa, lutadora pelos direitos humanos e cívicos em tempos de ditadura. Lá estão também as fotografias de outros autores que com ela colaboraram neste levantamento exaustivo, entre eles Artur Pastor ou a açoriana Maria Mendonça.
Jorge Calado, professor emérito do Instituto Superior Técnico e crítico musical, fala com emoção da exposição que comissariou. Afinal, ele é um dos meninos pequenos retratados com o “caixote” Kodak por Maria Lamas e conhece muitas das histórias ali desfiadas. Num momento de ternura pelo passado, envia um beijo à fotografia de um grupo de mulheres da mesma família. “Foram grandes lutadoras”, diz-nos, como se precisasse de justificar a intensidade do gesto diante dos jornalistas. E não precisa porque, nestas fotografias feitas há mais de 70 anos, tudo é intenso e verdadeiro, belo, mesmo quando o que se dá a ver são realidades ásperas, a que a propaganda salazarista aplicava várias camadas de maquilhagem.
O projeto Mulheres do Meu País nasceu justamente da necessidade de furar o cerco montado pelo regime a qualquer reflexão jornalística ou sociológica sobre a condição feminina. Em Julho de 1945, Maria Lamas tornara-se presidente da direcção do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, com vários objetivos, entre os quais o da realização de campanhas de alfabetização em todo o país.
Provavelmente pressionada pelo governo, a administração do jornal "O Século" (proprietária da revista dirigida pela escritora, "Modas & Bordados") faz-lhe um ultimato, obrigando-a a escolher entre a revista e o trabalho no CNMP. Maria Lamas não hesitou na escolha, mas, como escreve Maria Antónia Fiadeiro na biografia que lhe consagrou (Maria Lamas - Biografia) o preço a pagar foi alto: “Maria Lamas no desemprego, nunca mais encontrará trabalho certo e será perseguida e assediada policialmente. Tem 54 anos. Conhecerá a prisão e o exílio. Não sem antes empreender a realização de As Mulheres do Meu País, partindo, ao desafio da descoberta das condições de vida das mulheres portuguesas.”
Mesmo em liberdade, tal empreendimento exigiria o fôlego de um experimentado maratonista. Numa carta enviada de Viana do Castelo ao editor da obra (o industrial do papel, Manuel Fróis de Figueiredo), escreve: “Percorri todo o Alto Minho - regiões de Monção, Melgaço até Castro Laboreiro, Valença, Ponte da Barca, Lindoso e Soajo. Visitei muitas aldeias. Andei de comboio, automóvel, jeep, camião e … a pé. (…) E aqui estou mais entusiasmada com As Mulheres do Meu País do que quando saí de Lisboa.” Ao longo de aproximadamente dois anos, percorrerá o país, incluindo Madeira e Açores, sem olhar a dificuldades de acesso.
Com um forte instinto de repórter, regista as condições sócio-económicas que afligem as famílias, mas também o sofrimento causado pela violência doméstica, socialmente aceite (e até recomendada) nessa sociedade em que o patriarcado não era sequer questionado. A uma mulher de meia-idade, Maria Lamas ouve este desabafo, que regista (com uma notável sensibilidade ao registo oral): “Isto dos homes baterem nas mulheres, sempre assim foi. Mas também algumas atentam-nos, porque são de nêsperas. Não se lhes calam e o resultado é levarem mais depressa…”.
Concluída esta longa “peregrinação de reportagem” (como lhe chamou o jornal "O Primeiro de Janeiro"), Maria Lamas admitiria: “A maioria das próprias mulheres ainda aceita, como uma fatalidade, todas as injustiças e escravidões que sobre elas pesam.”