As brancas montanhas da vida
Dos realizadores belgas de Ciclo Interrompido (2012), um filme com aragens hippies. Chama-se Le Otto Montagne e baseia-se no muito lido livro de Paolo Cognetti. Uma crónica sobre o prazer dos ares da montanha em detrimento da vida urbana. A história de uma amizade entre dois rapazes de 12 anos, um da cidade e outro o único da sua aldeia em Grana, montanha esquecida nos Alpes italianos. Amizade que no começo da juventude é interrompida quando o rapaz da montanha começa a trabalhar na construção. Anos mais tarde, o destino aproxima-os e uma casa no topo da montanha é recuperada por ambos. Ao fim ao cabo, os dois têm uma ligação natural que ultrapassa os limites da amizade, como se os poderes da montanha e da sua beleza dramática os transformasse em homens-montanha.
Felix Van Groenigen e Charlotte Vandermeerch, os realizadores, estão do lado da montanha num filme que é todo uma experiência de escalada. Às vezes sofre de um certo efeito de parecença com um panfleto de auto-ajuda - ambos os amigos sofrem de depressão, mas também quase sempre sabem gerir um tom suave que torna o filme leve mesmo quando a tragédia espreita num cume da montanha. São cineastas que fazem da teoria do "homem-selvagem" um acontecimento humano e que sabem conduzir estas 2 horas e meia com um ritmo certo, nem demasiado acelerado nem excessivamente lento, mesmo sendo verdade que a dada altura, sobretudo quando uma das personagens vai conhecer montanhas para o Nepal, pareça empacar um bocadinho...
Estas montanhas filmadas com a cinegenia que se esperava valem por conter uma mensagem ambientalista prática, nada ativista nem coisa do género. Será apenas um convite para o público fazer parte de uma cristalização com os prazeres da natureza, palavra que o rapaz montanhês refuta...Uma utopia rural para sonharmos com água pura da montanha, mergulhos em pelota em lagos naturais e uma comunhão com cabras e vacas. Não será filme para ser candidato verdadeiro à Palma, mas é já um dos favoritos para a abstrata Palma da simpatia...
Entretanto, na secção Semana da Crítica, o surpreendente Alma Viva, de Cristèle Alves Meira, ensaio sobre a tradição das bruxas em Trás-os-Montes, foi ovacionado na sessão da noite. Um sinal de triunfo para uma co-produção entre Portugal e a França. Eis um filme que filma Portugal profundo com o mais profundo respeito pelas suas gentes, lugares e lendas. E tem tudo para ser um caso de grande público assim seja bem promovido...
Curiosamente, num encontro com a imprensa, Michel Azanavicius, realizador do filme de abertura Coupez!, denotava a sua preocupação com o atual abandono do público, ou seja, nem para uma comedia de zombies há otimismo. Será que faz sentido ter esperança para a bruxa transmontana morta-viva de Cristèle?
Isto tudo numa edição do Mercado em que se ouve muitos distribuidores a queixarem-se de não haver títulos fortes, sobretudo num momento em que a Netflix também vai às compras e anula as hipóteses de estreias nas salas, mas nada que tenha demovido A Bela América, de António Ferreira de ter vindo a esta feira tentar fazer negócio...
dnot@dn.pt