No Pico, a navegação não se faz à vista de terra, mas leva por guia o romance Pedras Negras, do escritor picaroto José Dias de Melo (1928-2005), perseguido pela PIDE pela ousadia de escrever sobre o abandono a que a ditadura votava estes ilhéus, já desafiados pela Natureza. É por isso que, ano após ano (e já vamos na 12ª edição), o Azores Fringe Festival, com epicentro no Pico, promove um encontro literário a que dá o nome de Pedras Negras, que tem por objetivo pôr em diálogo informal nomes consagrados da literatura nacional, açorianos ou não, com candidatos a escritores ou, pura e simplesmente, com público interessado.No centro de tudo está o autêntico furacão benigno que é Terry Costa, diretor artístico do Fringe e da entidade que o promove, a Associação Miratecarts. Ele faz os convites, arranja os apoios indispensáveis à realização do evento, põe pessoas em rede, vai buscar e levar os convidados ao aeroporto, certificando-se sempre de que o voo se realiza - afinal, faz parte da condição insular saber que a meteorologia é soberana.É o próprio que nos recorda como tem evoluído o Pedras Negras: “O Encontro já tem dez anos e começou por ser um evento pequeno, em que os artistas locais conviviam uns com os outros. Uma década depois, numa ilha rural e sem cidade, tivemos audiências com quase 200 pessoas. Conseguimos vender livros de autores que não são de cá, alguns nem sequer são dos Açores.”.Convidado especial.Este ano, o Pedras Negras teve, pela primeira vez, um convidado especial, neste caso vindo do continente: o escritor Valter Hugo Mãe. “Era algo que eu tinha vindo a pensar e posso dizer que correu muito bem”, diz-nos ainda Terry Costa. “Ele teve o seu evento, na abertura do Festival, mas apareceu noutros momentos e houve sempre um diálogo muito estimulante.”Para além de Valter, participaram, entre outros autores, Alexandre Borges, Pedro Almeida Maia, Diana Zimbron, Henrique Levy, Vítor Teves, o dramaturgo e encenador Peter Caan (da companhia de teatro sediada em Angra do Heroísmo, Cães do Mar) e a agente literária Marta Ferreira.Mas, sem margem de erro, importa dizer que o momento mais emotivo deste Pedras Negras foi a homenagem ao poeta Eduíno de Jesus, nome grande da poesia nacional, nascido em São Miguel há 96 anos. Na presença do próprio, no auditório municipal da Madalena, o professor e ensaísta Pedro Paulo Câmara comparou-o a Afonso da Maia (avô de Carlos da Maia, no romance de Eça de Queirós, Os Maias) e referiu-se-lhe “como homem de longos silêncios, dono de palavras múltiplas, que se aninham no seu regaço, como se delas fosse pai, mãe, capataz, patrão, senhor ou deus.”Esta multiplicidade de vozes é, para o poeta Vítor Teves, que esteve no Festival para lançar o livro Amarna - Odes Altermodernas (edição Poesia Impossível), um dos grandes atrativos do evento: “É a terceira vez que estou no Fringe e reconheço nele uma dimensão regional. É importante descentralizar, nos Açores, as apresentações dos livros, por exemplo. O Fringe abarca todos os estilos, sem qualquer preconceito. A mim, permitiu-me fazer uma apresentação satírica, ao meu estilo, num espaço tão especial como o Cella Bar.” Para o poeta, o que distingue o Fringe de outros festivais é “o seu caráter agregador e afetivo, no sentido em que cada pessoa é livre de expor o seu pensamento e expressão. Por outro lado, a vinda de pessoas como o Urbano Bettencourt, no ano passado, ou o Eduíno de Jesus, este ano, dão-lhe um peso e importância cultural muito grande.”Mas se a Literatura dominou o arranque da iniciativa, muito mais se tem feito, não só no Pico, mas também em São Jorge e no Corvo. Nas últimas semanas tem havido atividades de artesanato, pintura ao vivo, teatro, música, e muito cinema, com a exibição de curtas-metragens de diversos países (o programa shorts@fringe). Muito marcantes foram também as performances apresentadas, na Madalena, pela Companhia Cães do Mar, com o espetáculo A Balada de Portuguese Joe (focada na emigração dos açorianos para os Estados Unidos ) mas também a muito disruptiva performance da italiana Sara Lisanti, Muta-Morfosi. Isto sem esquecer o roteiro de sorrisos de pedra, da escultora Helena Amaral, que leva os visitantes aos pontos mais recônditos da ilha.Em jeito de desabafo, Terry admite, num curto momento de pausa, frente ao mar, que “a logística de tudo isto é um bocadinho louca.” Educado no Canadá (para onde a sua família emigrara), começou cedo “a participar no movimento Fringe [iniciado em 1947 na cidade de Edimburgo, engloba mais de 300 festivais pelo mundo] e no espírito de liberdade e expressão, sem julgamento, que este preconiza.” De regresso à ilha dos seus mais velhos, não se assustou com a dureza do solo e a omnipresença da montanha. Afinal, já Vitorino Nemésio admitia (em O Corsário da Ilhas) que “de todos os açorianos, foi o picaroto que levantou a enxada mais alto e cavou mais fundo.”.*A jornalista viajou a convite da organização