Art Garfunkel, 80 anos - a voz inconfundível
Art [Arthur] Garfunkel, o cantor novaiorquino que desde os 5 ou 6 anos de idade tinha uma admiração narcisística pela sua voz de ouro, entrou na esfera celeste do estrelato com o muito famoso duo Simon & Garfunkel [S&G] que, por estranho que possa parecer, existiu apenas entre 1964 e 1970. Garfunkel tinha já feito algumas incursões no mundo da música, sob o pseudónimo de Artie Garr - com canções como Beat Love ou Dream Alone (1959) - e, com o amigo de infância Paul Simon, como Tom Graph no duo Tom & Jerry (1956-1962).
A vontade de entrar no circuito profissional, no início da década de 60, levou S&G ao epicentro da música folk na cidade de Nova Iorque, a Greenwich Village, onde vários cafés e restaurantes tinham música ao vivo e permitiam aos jovens com talento apresentarem-se em palco. Mas não foram bem aceites. Dave van Ronk (1936-2002), um proeminente músico então estabelecido na área, reconhece que apesar da excelente qualidade musical do duo, Simon e Garfunkel eram entendidos como "músicos comerciais" e um pouco desprezados por essa razão (com Elijah Wald: The Mayor of MacDougal Street, 2013). De facto tinham gravado discos ao estilo dos anos 50 e, apesar de terem a mesma idade de Bob Dylan ou Joan Baez, surgiam associados a um modo de vida mais convencional, prosseguiam estudos universitários (ao contrário da maioria dos seus pares), usavam o cabelo curto e não faziam vida de hippies (embora não renunciassem a algumas drogas).
Na meteórica ascensão do grupo ocorrida a partir do final de 1965 inclui-se - para além dos subsequentes discos com classificações cada vez melhores nas tabelas de vendas - o sucesso da banda sonora do filme The Graduate (A Primeira Noite, 1967), cujo álbum alcançou rapidamente o 1.º lugar. Os êxitos não paravam e, em 1970, o último LP de estúdio do duo, Bridge Over Troubled Water, chega ao nº 1 das tabelas com um impacto estrondoso, obtendo cinco galardões Grammy. A canção homónima, interpretada por Garfunkel a solo, ainda hoje é considerada como a sua imagem de marca.
Mas o álbum deixou várias outras marcas na história da música popular americana. Por um lado assinala a rotura de Simon & Garfunkel como grupo, encerrando assim um importante e glorioso capítulo das carreiras destes músicos. Por outro, são hoje conhecidas as vicissitudes por que ambos passaram no ano anterior para conciliar o trabalho de estúdio, nos Estados Unidos, com as filmagens de Garfunkel no México, onde dava os primeiros passos como ator de cinema. E esta circunstância explica também por que razão estes artistas, que estavam nos píncaros, não participaram no que viria a consagrar-se como o mais emblemático evento musical da década de 60 - o mítico Festival de Woodstock (Ag. 1969) - apesar de terem sido convidados.
Garfunkel seguiu o seu caminho continuando a aceitar trabalhos no cinema, mas não se desligou da música. Nas décadas seguintes gravou vários álbuns de estúdio a solo, dos quais Everything Waits to Be Noticed (2002) é considerado por Spencer Leigh (Simon & Garfunkel Together Alone, 2016) como o melhor.
Ao longo da vida Garfunkel não escondeu o quanto admirava Paul Simon como músico (que por sua vez o elogiava como cantor) e como ansiava por um reencontro de S&G. Entretanto ambos participavam pontualmente no trabalho de estúdio um do outro e, em diversas ocasiões, juntaram-se para um concerto único ou mesmo para uma digressão. Mas a última ficou marcada pela dramática afonia de Garfunkel durante um espetáculo, fruto de um grave problema numa corda vocal que o afastaria dos palcos por quatro penosos anos. Aquando da publicação do seu livro de memórias, What Is It All But Luminous (2017), Garfunkel responde a Andy Greene, da revista Rolling Stone: "I lost my voice in 2010. [...] It was terrible. 2012, no voice. [...] And by 2014 I was singing again" ("Perdi voz em 2010. [...] Foi terrível. 2012, sem voz [...] E 2014 cantava de novo")
E se é espantoso que naquela idade tenha recuperado a voz ao ponto de voltar a cantar, não deixa de ser incompreensível que - tendo sofrido uma doença pulmonar em criança e prezando tanto a sua voz canora - Garfunkel tivesse continuado a fumar até quase aos 70 anos de idade (quando deixou também a marijuana, segundo consta).
Outra perplexidade em relação a esta figura idiossincrática prende-se com o facto de ele nunca se ter dedicado a um instrumento, numa época em que a generalidade dos jovens aprendia a tocar guitarra. Segundo Leigh, Garfunkel optou [brevemente?] pelas teclas, neste caso o cravo. Mas dado que o estudo de um instrumento requer uma prática continuada e tempo, pode ponderar-se as dificuldades que o músico teria tido nessa altura (c. 1970), quando era também professor de matemática. Ou que certamente viria a ter mais tarde, quando decidia fazer as suas longas deambulações solitárias a pé, nomeadamente atravessando grandes extensões do Japão, da Europa ou dos Estados Unidos.
Sendo certo que nunca farei estas perguntas a Garfunkel, há outras a que ele tem respondido em inúmeras entrevistas ao longo do tempo. Sobre o/a artista que mais o influenciou na juventude, responde com ênfase a Bill Buell (Daily Gazette [NY], 2018): "A grande voz que realmente influenciou a minha vida foi Joan Baze". Quanto à sua canção preferida de S&G, reiteradamente afirma ser Scarborough Fair, "que por acaso nem é de Paul Simon, mas sim tradicional escocesa". Vale a pena ouvir a versão que Garfunkel publicou no Youtube em agosto passado, anunciando o seu regresso aos palcos após os confinamentos. É difícil acreditar que é uma voz com 80 anos. E muita estrada!
Flautista
dnot@dn.pt