São 22 quilómetros lineares de estantes com documentação relativa ao passado marítimo de Portugal, o mesmo é dizer que, se esta distância fosse medida em linha recta, partiríamos de Lisboa para chegar ao Estoril. Mas esta “estrada”, por ser de papel, não tem portagens e faz-se dos milhares de pastas de documentos depositadas no Arquivo Histórico e Biblioteca da Marinha Portuguesa. Sediada no edifício da Cordoaria, em Lisboa, a instituição, diariamente aberta ao público, guarda muito mais do que a crónica de antigos feitos militares. .Nela, encontramos, entre tantos outros testemunhos mais ou menos remotos, o medo sentido pelos marinheiros do rebocador Patrão Lopes quando escoltaram a primeira esquadrilha de submarinos, de Itália até Portugal. O que era aquela sombra na água? - estranhavam eles, que nunca tinham visto tal “peixe”. Mas também testemunhamos o júbilo de Gago Coutinho por ter conseguido equipar com motores Rolls Royce o primeiro hidroavião utilizado na travessia aérea do Atlântico Sul, que completou na companhia de Sacadura Cabral. Ou o dilema ético e ideológico de um comandante que deixou uma Lisboa monárquica e regressou com a bandeira da República hasteada em todos os edifícios públicos..Como nos diz o diretor do arquivo, Capitão de mar e guerra, Alexandre Ribeiro Cartaxo, há de tudo um pouco nestes quilómetros de documentos: “Devemos ser um dos arquivos portugueses com o leque mais amplo de temáticas. A atividade da Marinha vai muito para além dos navios. Basta pensar num tema. Saúde? Temos. Educação? Temos. Ambiente? Também.” A abrangência também é o geográfica. Afinal, a Marinha portuguesa navegou por todo os mares do mundo, mas, como também frisa , nem sempre em situações de conflito. “Basta pensar que muitos tratados de paz entre Portugal e outros países foram celebrados a bordo de navios nossos. E também temos registo de muitas missões de salvamento em que participámos.” Isto sem esquecer que este arquivo também guarda muita documentação relativa às atividades da marinha mercante..Isabel Beato e João Carlos Iglésias, responsáveis executivos do arquivo, que conduzem a visita guiada ao DN, corroboram a visão ampla destes fundos documentais: “Há aspetos muito comoventes. Sempre que a majoraria real da Marinha era informada de que havia um menor, do sexo masculino, desamparado por ser órfão de pai e mãe, procurava encaminhá-lo, colocando-o ao seu serviço.” .Isabel Beato, com muitos anos de “casa” (“ainda sou do tempo em que este arquivo estava em Alcântara, no Corpo de Marinheiros”) aponta ainda, como exemplo, a “importância da documentação vinda de Macau, fundamental para investigar o tráfico de coolies, escravos chineses que, sobretudo ao longo do século XIX, eram levados, em condições indignas, para as Américas. Alguns também foram introduzidos nos Açores nas plantações de chá.”.O relatório da viagem aérea de Gago Coutinho e Sacadura Cabral é um dos tesouros deste Arquivo..Aqui pode ver-se o mapa da viagem dos dois aviadores, que também se pode consultar no Arquivo..A riqueza humana e documental do Arquivo e da Biblioteca é muita, mas, como quem o dirige reconhece, os recursos humanos são poucos para “conservar, preservar a documentação, catalogá-la e dar apoio aos investigadores e cumprir as regras internacionais da arquivística moderna.” Uma escassez que contrasta com a de outras épocas, em que este arquivo chegou a ter dezenas de funcionários. Apesar de criado pelo Alvará de 28 de julho de 1736, as origens do Arquivo remontam apenas ao ano de 1843 e, mesmo assim, sujeitas à turbulência que foi a vida institucional e política portuguesa entre a segunda metade do século XIX e meados do século XX. A título de curiosidade, Isabel Beato chama-nos a atenção para um documento de 1934, em que se abre concurso para um arquivista. Habilitações requeridas: “Que soubesse ler e escrever.” O que também era um sinal desses tempos..Apesar das dificuldades, este arquivo mantém a dinâmica. A UNESCO distinguiu o original do relatório da viagem de Gago Coutinho e Sacadura Cabral (que a repórter folheia por momentos, com cuidado e emoção) como património mundial e há capacidade para tratar documentação adquirida em leilão ou doada por terceiros. Como nos diz Isabel Beato: “Procuramos sempre sensibilizar as pessoas para que nos entreguem a documentação de família, que possam ter em casa. Embora não tenhamos muitos meios, sabemos que, pelo menos, aqui, não se vai perder e será conservada com condições que não existem em casa de cada um. Mesmo que só a consigamos catalogar daqui a algum tempo, temos essa salvaguarda.”.Nesta missão, o Arquivo conta com os apoios da Arquivo Nacional da Torre do Tombo, do portal da memória da Defesa e está envolvido no portal archeevo, onde é possível encontrar em rede fotografias, vídeos e outros materiais digitalizados (https://arquivohistorico.marinha.pt/welcome), incluindo o referido e tão precioso Relatório da viagem aérea de Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Ainda com o apoio da Torre do Tombo, este arquivo permite a muitas pessoas reconstituir as suas árvores genealógicas, sempre que um (ou mais) dos seus antepassados tenha prestado serviço na Marinha. .Nestes 22 quilómetros lineares de estantes há materiais de todo o tipo porque, como diz João Carlos Iglésias, a “Marinha guarda tudo, mesmo um pedaço de madeira que acompanhou uma reclamação, para demonstrar que a madeira de determinado navio estava podre.” O documento mais antigo remonta ao século XVII e faz uma listagem do que deveria conter uma botica de bordo e os mais recentes estão guardados, já não numa pasta, mas numa pen. Mas, pelo meio, nesta viagem no tempo, há registos de quem eram os capitães de mar e guerra de 1735, os preços de custo da construção naval do século XIX ou os manifestos de carga dos navios que vinham do Brasil carregados de ouro no reinado de D. João V. Ou bem mais recente, e ainda a mexer com pinças emocionais, toda a documentação relativa às operações da Marinha na guerra colonial..Mas também há autênticas obras de arte, como os relatórios ilustrados de uma viagem ao Daomé, no século XIX. Dando-se a feliz circunstância do comandante da canhoneira ter sido um aguarelista de exceção, resolveu acompanhar a informação escrita contida no seu relatório com ilustrações do que ele próprio ia vendo. O resultado é um deleite para a nossa vista cansada de tanto scroll nas redes sociais..Muitos anos depois de ter começado a trabalhar neste arquivo (“tantos que ainda trabalhei com fichas bibliográficas dactilografadas”), Isabel Beato ainda se surpreende: “Tivemos uma doação muito curiosa, feita por um oficial. É um conjunto de postais ilustrados enviados por um marinheiro português à sua noiva, de lugares tão remotos como o Hawai ou o Japão.” .O jovem era Artur Caetano Dias e a viagem assim documentada em tão amorosa correspondência não foi uma missão como outra qualquer. Artur ia a bordo do cruzador São Gabriel, que em 1909 zarpara de Lisboa, levando hasteada a bandeira monárquica. Cerca de dois anos depois, quando o navio regressou, já vigorava a República e o Rei, bem como toda a família, tinha rumado ao exílio. Mas sendo o comandante do navio, Pinto Basto, um fervoroso monárquico, os seus correligionários (e talvez os republicanos) esperavam que ele se demitisse. O que não aconteceu. Alegando que estando no mar, a comandar um navio, não teria sido ético tomar tal decisão, manteve-se em funções. Foi pedindo licenças sem vencimento até ao final, mas nunca cortou verdadeiramente o laço com a Marinha. Segundo Isabel Beato, “os monárquicos nunca lhe perdoaram essa atitude.”.Entre os documentos deste Arquivo estão ainda os que testemunham a sua própria evolução tecnológica. Isabel Beato recorda que o primeiro computador aqui utilizado, nas décadas de 1960 e 1970, ocupava toda uma sala e tinha muito menos capacidade do que qualquer telemóvel dos nossos. Este olhar sobre um passado que não é assim tão distante pode ser um trunfo nos momentos em que a tecnologia falha. Em várias circunstâncias, Isabel já deu por si a apoiar os mais jovens quando tal acontece: “Os investigadores mais novos não sabem o que fazer se a internet, por qualquer razão, não funciona. Desconhecem o uso das enciclopédias. Um arquivo não é o depósito do passado, é um instrumento de conhecimento sobre a condição humana.” E conclui: “Nunca perdemos isso de vista.”