Em maio, Sofia Coppola completou 50 anos, chegando ao pico da meia idade. Esta quinta-feira Anjelica Huston entra na casa dos respeitosos 70. O que é que ambas têm em comum? Não apenas o facto de serem filhas de dois gigantes de Hollywood (Francis Ford Coppola e John Huston), e as únicas representantes de uma terceira geração de vencedores de Óscares, mas também um início de carreira enxovalhado pela crítica: quando Sofia assumiu a pele da trágica filha de Michael Corleone, em O Padrinho: Parte III (1990), e foi arrasada com títulos de imprensa como "Ela estragou o filme do pai?", Anjelica ter-se-á recordado da humilhação de que foi alvo, nos mesmos moldes, ao estrear-se no grande ecrã com Entre o Amor e a Morte (1969)..Os dois filmes realizados, claro, pelos respetivos pais, mas com desfechos diferentes em cada uma delas: Sofia, que estava só a substituir Winona Ryder, não fazia tenções de ser atriz - como o seu percurso de realizadora veio a comprovar -, mas Anjelica sim, e demorou muito tempo a recuperar a confiança à frente da câmara..Em 2015, num almoço com um jornalista do The New York Times, as duas juntaram-se e partilharam as memórias desses infortúnios do começo. O caso de Anjelica foi particularmente frustrante. "Eu queria estar em Itália com Zeffirelli", conta a atriz, que na altura tinha sido escolhida pelo realizador italiano para interpretar Julieta na sua adaptação de Shakespeare, sendo travada por uma carta de John Huston a dizer: "A minha filha vai trabalhar comigo". Queria ser ele a apresentá-la ao mundo. E assim aconteceu, com mau ambiente de bastidores. "Ele nem me deixou usar maquilhagem, porque as donzelas do século XV não usavam. E eu estava obcecada com a maquilhagem.".Apesar deste princípio de carreira pouco auspicioso, Anjelica Huston chega aos 70 anos sem um pingo de rancor e com um novo ofício caseiro: olaria. Dizem que ao longo da vida se deve plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro. Ora ela só precisou desta última realização para mostrar que a sua história foi além de metas estabelecidas para alcançar alguma forma de apaziguamento. E é, de facto, uma mulher pacificada, a viver o seu terceiro ato. Em vez de uma árvore, preferiu plantar uma roseira, não teve filhos, mas é uma tia babada, e quando a solidão apertou após a morte do marido, o escultor mexicano Robert Graham, escreveu uma autobiografia em dois volumes - A Story Lately Told e Watch Me: A Memoir -, o primeiro sobre a infância na Irlanda e a adolescência em Londres, o segundo a contemplar a superada dor íntima da sua relação com Jack Nicholson e o percurso no cinema. Para que não haja dúvidas: cada uma daquelas (honestíssimas) páginas foi exclusivamente escrita por ela, apoiada na sua "boa memória de atriz" e em papéis amarelos que rascunhou a lápis, a conselho de Lauren Bacall..Reza a lenda que a notícia do nascimento de Anjelica, na Califórnia, a 8 de julho de 1951, chegou ao pai pelas mãos de um mensageiro descalço que atravessou o Congo a correr para entregar o telegrama no noroeste do Uganda, mais precisamente, nas Cataratas de Murchison. Huston, em plena rodagem de A Rainha Africana, leu a mensagem e meteu-a no bolso sem qualquer traço de expressão, perturbando a própria protagonista, Katharine Hepburn, que quis saber o que vinha escrito. "É menina", respondeu. "Chama-se Anjelica.".Filha de Enrica Soma, jovem bailarina que ele descreveu como "uma madonna do quattrocento", a criança surgia como mais um evento natural da sua prolífica vida amorosa (era fruto do quarto casamento do cineasta, num total de cinco). Quase sempre ausente em viagens e rodagens, o hedonista e aventureiro Huston comprou uma grande propriedade na Irlanda, onde Anjelica cresceu, rodeada de biombos japoneses, tapetes franceses, cabeças de animais de caça, quadros de Monet e póneis. Era a manifestação do espírito de colecionador do pai, que, segundo a filha, também incluía pessoas... Ele vinha pelo Natal, com prendas de todo o mundo e convidava a nata das artes e letras, de Peter O"Toole e Robert Mitchum a John Steinbeck e Jean-Paul Sartre. "Quando chegava, o sol entrava na casa, as coisas tornavam-se majestosas, a prata brilhava. A casa ganhava outras cores, os lustres iluminavam-se e o champanhe borbulhava. Era o homem mais arrebatador que conheci. Era como um deus", escreve Anjelica nas memórias, guardando uma especial admiração pela grandeza física do seu pai líder, o Hemingway do cinema, "mais alto do que ninguém, um leão". .John Huston que dirigiu o próprio pai, Walter Huston, em O Tesouro da Sierra Madre (1948) - valendo o Óscar ao ator -, e que, depois da falsa partida com a filha, voltou a dirigi-la em A Honra dos Padrinhos (1985), alcançando também ela um Óscar logo à segunda interpretação digna de nota. Mas o momento mais comovente da colaboração entre os dois foi o magnífico Gente de Dublin (1987), adaptado de um conto de James Joyce, com uma inesquecível cena em que ela segura uma tristeza nobre no rosto enquanto escuta uma canção que lhe traz recordações ternas e fúnebres. "Este foi o último filme do meu pai. Ele encontrava-se muito doente. Eu estava no topo das escadas e tudo o que precisava para fazer aquela cena era olhar para o meu pai na sua cadeira de rodas. Estava tudo ali.".O outro homem da sua vida, já se sabe, dá pelo nome de Jack Nicholson. Tinha 21 anos quando foi parar à festa de aniversário dele, sendo recebida por "aquele sorriso" e acabando por dançar com ele a noite toda - dormiram logo juntos, mas na manhã seguinte, quando chamou um táxi, Anjelica apercebeu-se do estilo incorrigível que iria ferir a relação. Ainda assim, foram 17 anos de imagem de marca do glamour noturno de Hollywood, entre sistemáticas infidelidades, e sem um papel de casamento. Separaram-se quando Nicholson engravidou outra mulher mais jovem... Mas, de novo, Huston não guardou mágoa. Na autobiografia, retrata-o com o carinho que se tem a uma criança incapaz de emenda. .No cinema, a história foi outra. Ligada ao mundo da moda desde muito cedo, Anjelica Huston transpôs para as suas personagens um sentido de pose e elegância capaz de transformar a assustadora feiticeira mor de As Bruxas (1990), de Nicolas Roeg, num festival de sensualidade, em rima perfeita com a mais popular Morticia Addams, excêntrica mãe de A Família Addams, que deu dois filmes e cuja doçura se pode reencontrar, com outras cores, na mãe Etheline Tenenbaum em Os Tenenbaums - Uma Comédia Genial (2001), de Wes Anderson. Foi com este realizador que Huston criou afinidade nos últimos anos, integrando os elencos de Um Peixe Fora de Água (2004), The Darjeeling Limited (2007), e mesmo as vozes da animação Ilha dos Cães (2018). No novo filme de Anderson, The French Dispatch, apresentado por estes dias no Festival de Cannes, surge também como narradora..Mas o currículo de Anjelica é mais rico do que um olhar pela rama sugere. Destaque-se, por exemplo, os dois filmes que fez com Woody Allen - Crimes e Escapadelas (1989) e O Misterioso Assassínio em Manhattan (1993) -, Inimigas e Amantes, Uma História de Amor (1989), de Paul Mazursky, Anatomia de Um Golpe (1990), de Stephen Frears, ou Dívida de Sangue (2002), na pele de uma médica que dá ordens de repouso absoluto a Clint Eastwood...