"Ao Marquês de Pombal não faltava o sentido da propaganda"
O historiador António Borges Coelho publicou recentemente o sétimo volume da sua História de Portugal, que percorre 27 anos da vida nacional e vai até ao reinado de D. José e do seu ministro Marquês de Pombal. Intitulado Portugal na Europa das Luzes, poderá ser o último volume da série, apesar de o seu objetivo fosse chegar à Revolução de 1820. Confessa que é "realista" e que a grande quantidade de informação torna cada vez mais complexa a investigação e a sistematização desse novo período, sendo que a idade lhe exige "alguma tranquilidade", incompatível com uma oitava síntese.
Quando se pergunta a Borges Coelho qual dos sete volumes lhe deu mais prazer escrever, a resposta não demora: "Talvez o primeiro, Donde Viemos (2010) porque resulta de muitos anos a pensar nesta História de Portugal - é o começo. Depois, o Portugal Medievo, porque contesta fundamentadamente boa parte da visão portuguesa sobre a época medieval. Também me afasto da visão tradicional em Os Filipes. É certo que continua a haver quem fale da Revolução de 1383/85 como uma crise dinástica e outras opiniões infantis. Têm medo da palavra revolução. Foram as multidões que ousaram colocar no trono o rei D. João I, o rei que abriu o caminho para a expansão portuguesa no Mundo. Mas, posso dizê-lo, o volume que me deu mais trabalho foi o Portugal na Europa das Luzes."
O Marquês de Pombal é a estrela deste livro?
Em certa medida, mas a minha preocupação não foi dar-lhe esse estatuto. Não parti previamente com a ideia de que Pombal era alguém fantástico nem asqueroso. Já sabia que era acusado de factos pouco recomendáveis e também que teve inimigos muito poderosos. A ideia, talvez dominante e primária, é a de que Pombal não gostava dos jesuítas e tentou exterminá-los. Creio que a figura do marquês fica definida neste livro tanto em situações positivas como negativas, mas não o nega como figura dominante.
Não foi um português normal?
Foi sempre dado como um fidalgo pobre mas a sua ascendência provinha da nobreza militar, da nobreza de toga e da nobreza eclesiástica. Um tio que muito o ajudou era cónego da Patriarcal e do seu irmão fez inquisidor geral. Casou duas vezes e com figuras da mais alta nobreza portuguesa e austríaca. Mesmo sem um curso superior, pertenceu ao núcleo da Academia de História e ao do Conde da Ericeira. Seria, pelo menos, um autodidata com conhecimentos suficientes para fazerem dele um diplomata. Nesta categoria vai para o estrangeiro, primeiro para um posto muito complexo em Inglaterra e em seguida para a Áustria. Duas grandes potências: uma marítima, que na Guerra de Sucessão de Espanha se tinha elevado no poder europeu e colonial, e outra da Europa Continental.
Portugal estava assim tão voltado para a Europa nessa época?
Nessa altura o centro da atividade social e política portuguesa era Lisboa e o Brasil, sendo que a África ficava cada vez mais ligada a este último na medida que era de lá que vinha a riqueza fundamental - ouro, açúcar e algodão, couros e outras matérias-primas.
Olhamos desde sempre Pombal como uma figura que podia em Londres e Viena ombrear com um rei mas colocámo-lo a nível de se o estudar de uma forma marginalizada na nossa História. Porquê?
É preciso ver que na primeira metade do século XIX já os liberais faziam de Pombal um modelo para as suas reformas e para os republicanos aparecerá como um grande exemplo. Pombal não pode ser visto desligado do contexto social e político e da aprendizagem adquirida na sua intensa atividade diplomática. Nos países onde esteve contraiu relações intensas com fidalgos da mais alta nobreza portuguesa que partilhavam as ideias das Luzes e elevou o seu estatuto social casando com uma condessa austríaca. A Inglaterra era inimiga do Vaticano e na Áustria desenvolvia-se um aceso conflito com o papa e os jesuítas, a ordem mais poderosa do tempo e vinculadamente ligada ao Vaticano. Estavam longe da guerra inicial e S. Francisco Xavier, antes de embarcar para a Índia, vivia cuidando dos pobres e dos doentes nos hospitais. Naquele tempo tinham abandonado a regra inicial da pobreza e de cuidar dos mais pobres. Agora a Companhia de Jesus era uma potência, não só política e religiosa, mas económica. Nas suas plantações espalhadas pela América, África e Ásia trabalhavam milhares de escravos, mesmo que muitos não tivessem essa designação.
Pombal tem um enorme património de escritos que se mantêm quase desconhecidos. Porquê?
Muitos historiadores têm consultado e até publicado alguns dos seus escritos. Mas a mais alta nobreza não gostava dele e alguns titulares foram cruelmente justiçados e os seus familiares penavam nas cadeias e nos conventos, devido à tentativa falhada do regicídio. Por outro lado, a criação de companhias monopolistas que retiravam os lucros às companhias religiosas fixadas no Brasil e ao pequeno comércio, tinha diminuído em muito os poderes destas. Não era uma situação fácil de lidar.
Pode-se dizer que Pombal tinha uma grande cultura?
Não era um escritor de prosa brilhante, mas sim rica ao nível de projetos e de ação política. Também não lhe faltava ao Marquês de Pombal o sentido da propaganda.
É com essa formação que facilita a entrada das Luzes em Portugal?
Sem dúvida. Como se pode observar em algumas medidas - por exemplo, o fim da distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos. Os cristãos-novos eram tratados de uma de forma humilhante pela Inquisição. De uma forma quase obsessiva, diga-se, e Pombal pretende que Portugal se aproxime ou até ultrapasse os países europeus mais desenvolvidos e para isso desenvolve as companhias e retira poder à nobreza, mesmo que não queira acabar com esta. Dá fim aos pequenos feudos mas os grandes mantêm-se. Sente-se muito bem como Conde de Oeiras e Marquês de Pombal. E de fidalgo pobre acaba por desenvolver uma das maiores fortunas no Portugal na sua época. Ou seja, podemos compreender a má vontade contra as Luzes por parte da Companhia de Jesus.
Nem a Igreja nem a nobreza lhe facilitaram a vida?
Nunca. Os jesuítas chegaram a pregar nas igrejas contra a política de Pombal e do rei que, depois do Terramoto de 1755, só nele confiava. Havia dois secretários de Estado, mas quando a terra começou a tremer só Pombal, a cavalo para vencer as ruínas, se apresentou no Paço para tomar as medidas indispensáveis. O outro secretário só oito dias depois se apresentou ao serviço.
A Inquisição era o grande problema?
Sem dúvida. Na Inquisição o preso não sabe do que é acusado, nem quem o acusou. Tem de adivinhar e muitas vezes entrega uma vila inteira. Sobretudo, a família, porque se não o fizer a confissão está incompleta.
Há quem contorne essa repressão?
A minha teoria é de que o pensamento moderno tem início em Portugal na época de D. João II e de D. Manuel, quando se começa com a navegação atlântica que permitirá dobrar o Cabo da Boa Esperança. Um dos homens fundamentais é um vice-rei da Índia, João de Castro, que enuncia a ciência experimental moderna, no entanto, apesar de amigo do rei D. João III e dos príncipes já escreve "a medo". E Gil Vicente escreverá "o Paço em frade tornado nem é paço nem é nada".
Esse pensamento de João de Castro não tem seguimento?
É abafado. Basta ler a História Trágico-Marítima, um livro fantástico, e ver a quem é que se atribuem os naufrágios? Descreve-se todo o drama, mas a explicação final cabe sempre à Divina Providência.
Critica a má utilização do ouro do Brasil ao dizer que "não ia só para Inglaterra, muito do ouro brasileiro seguiu para Roma". Em Portugal, apenas decorava as igrejas?
Decorou belíssimas igrejas e, sem dúvida, chegou muito ao Vaticano e às mãos dos cardeais. Para pagar o quê? Para os padres poderem rezar três missas no Dia dos Fiéis Defuntos e outras coisas do género. Se fizermos uma análise às contas do Vaticano dessa época, teríamos certamente uma surpresa tremenda, embora muito desse ouro circulasse secretamente e não de forma aberta.
A lista dos conventos que existiam à época em Lisboa era enorme...
Era um número impressionante: 104 conventos.
Esta disputa entre a Igreja e o Estado só terminará quase no fim do governo de Salazar?
A Igreja marcou durante mais de um milénio toda a sociedade. Formatava as consciências, preparava o bom nascimento, a boa morte, perdoava os pecados, socorria nas aflições, e dava uma visão do mundo. Quanto à visão do mundo, os teólogos definiam o que se deve ter e crer.
O Terramoto torna-se o grande momento de rutura na História de Portugal?
No governo de D. José sem dúvida, e marcará até hoje a cidade de Lisboa. O Terramoto faz de Pombal o político indispensável. Até aí, secretamente, ia avançando com os seus projetos mas devagar. Agora avançam as companhias de comércio, desenvolvem-se as manufaturas e a indústria, reforma-se a Universidade e o ensino público. O desenvolvimento da agricultura é impressionante.
D. José tem uma importância muito maior do que aquela que lhe é dada?
Não era um "banana"!
Uma das figuras que recupera é a do rei D. José, muito ofuscado pelo marquês.
É ofuscado porque o marquês é o homem da ação e o estratega. Mostro a visão do rei com a carta, assinada pela sua Real Mão decretando que a cidade de S. José de Rio Negro, no Pará e Maranhão, que as ruas sejam largas como serão as da Baixa Pombalina.
Temos cada vez mais historiadores estrangeiros interessados na nossa História. A que se deve?
O 25 de abril trouxe uma alteração muito grande em Portugal no que respeita à preocupação com a História e com o seu ensino. Libertou-se da pregação da sebenta - que agora parece ter regressado -, cativando uma série de novos investigadores. A nossa História, do século XV ao século XX, é História de Portugal e das suas Colónias. Como tal interessa desde logo às Potências Coloniais. Durante vários séculos estivemos voltados para os vários continentes. Basta ver que Camões e Fernão Mendes Pinto sulcaram os três principais oceanos e nenhum deles viajou para a Europa.
Referiu a palavra "colonial". Hoje fala-se muito de uma visão neocolonialista sobre a História portuguesa. Concorda?
É um absurdo completo tentar retirar ou destruir os monumentos e objetos que marcam esse período colonial. Foi brutal porque impunha a visão e os interesses do europeu e porque incrementava o negócio de escravos, também praticado pelos africanos. Não podemos apagá-lo da nossa consciência, mas havia mais mundos.
PORTUGAL NA EUROPA DAS LUZES
António Borges Coelho
Editorial Caminho
285 páginas
Principalmente poeta, Maria do Rosário Pedreira publicou no último ano dois livros bem diferentes; um primeiro, Adeus, Futuro, e um segundo, o meu corpo humano. Respetivamente, uma coletânea, na quase totalidade, de algumas das suas crónicas no Diário de Notícias e uma recolha da sua poesia mais recente. Ambos são marcos importantes da sua escrita e oferecem ao leitor uma perceção mais completa da autora, permitindo conhecer de uma vez só a sua divisão sobre as questões reais do mundo e de outra as irreais - se é que se pode descrever assim um dos assuntos da poesia. É difícil destacar uma ou outra página em qualquer um deles pois perfazem sempre uma descrição de opiniões e sentimentos que explicam os dois lados de uma escrita. Quem a lê na poesia gosta de a conhecer na prosa e vice-versa, daí que a coincidência de dois livros espaçados por um tempo ínfimo seja uma boa visita.
Os títulos dizem tudo, sendo que o primeiro é um achado porque se despede de algo que ainda não aconteceu, contradizendo o suporte de em muitas histórias existir uma recordação do passado e de colocar ao leitor muitas das grandes questões do presente. Que tanto passa pela contradição do "pé descalço" de outros tempos de um viver português (p.118) face à invenção comercial dos ténis "Jesus Shoes", imbuídos de um alto preço e de particularidades que dão razão ao jogo de palavras do nome do volume: "um crucifixo nos atacadores, água benta do rio Jordão nas solas, um versículo da Bíblia escrito num dos lados e ainda um pontinho vermelho algures, simbolizando o sangue de Cristo".
O que pode a poeta contrapor à realidade muitas vezes angustiante perante as provas apresentadas no primeiro volume? A resposta surge no segundo em muitos dos poemas, onde certos temas - morte, fuga, lágrima, fingimento - teimam em percorrer muitos dos versos. A origem destes poemas, se é que ela existe, pode ser encontrada num deles: "Não me arrependo da / palavra que me fugiu da / boca como bala cega". Já em exemplos anteriores se viajava pela expressão poética de forma arrebatada, e não se evitará nas páginas à frente, como no poema curto, simples e certeiro, chamado Nuca, o reviver de tantas fórmulas que vão perdendo o sentido com o curso da compreensão.
Não será por acaso que o meu corpo humano é impresso em caracteres que homenageiam o renascimento italiano, uma letra perfeita para justificar as primeiras palavras do poema Ossos: "Quando estou mais triste / costumo conversar com a / terra", mesmo que a seguir desvende que lhe agrada mais o "fogo". É em muito destes elementos e contradições que as 74 páginas se insuflam.
ADEUS, FUTURO
Maria do Rosário Pedreira
Editora Quetzal
O MEU CORPO HUMANO
Maria do Rosário Pedreira
Editora Quetzal