Assim vai a paisagem cinematográfica: por um lado, as plataformas de streaming proliferam, sendo agora as principais fontes de rendimento do audiovisual; por outro lado, de vez em quando, descobrimos que é nesse mundo virtual que está o grande cinema, precisamente aquele que necessitaria da grandeza do ecrã de uma sala escura para ser devidamente celebrado. Mas evitemos um banal discurso de queixa. Em termos simples: Sempre o Diabo, de Antonio Campos, produzido e lançado pela Netflix, é um dos grandes filmes do ano..Podemos até supor (o que não significa o mesmo que profetizar...) que, daqui a algumas décadas, quando algum investigador se interrogar sobre o "estado de espírito" da América na era de Donald Trump, um filme como Sempre o Diabo será reconhecido como um objecto precioso e revelador..Nada ver com um noticiário televisivo, entenda-se. Nem sequer com a abordagem do nosso presente. Estamos perante uma história com personagens enquistadas entre os traumas decorrentes de dois conflitos: a Segunda Guerra Mundial e a guerra do Vietname. O certo é que por aqui perpassam fantasmas, interrogações e várias formas de violência de uma nação a contas com as tragédias da sua identidade..YouTubeyoutubeZ2XxVyIMWm8.No original The Devil All the Time, o filme baseia-se no romance homónimo de Donald Ray Pollock, publicado em 2011 (é ele, aliás, que empresta a voz à narração em off). Da narrativa em ziguezague temporal - abarcando um período que vai de meados da década de 40 até ao momento, cerca de vinte anos mais tarde, em que o presidente Lyndon Johnson decide reforçar a presença militar dos EUA no Vietname -, podemos dizer que se trata de um labirinto de gerações em que as heranças afectivas se baralham com uma cultura religiosa marcada por uma noção opressiva de culpa..A saga do jovem Arvin Russell (Tom Holland) evolui como um processo de "purificação" da herança do pai, Willard (Bill Skarsgard), a certa altura cruzando-se com a personagem inquietante do reverendo Preston Teagardin (Robert Pattinson). Através de tais personagens, deparamos com a vulnerabilidade das figuras femininas, quase sempre encurraladas entre códigos tradicionais de submissão e muitas formas de manipulação sexual induzidas e "justificadas" por valores religiosos. Também por isso, o sector feminino do elenco é brilhante, incluindo Riley Keough (que vimos, por exemplo, em Sorte à Logan, de 2017, sob a direcção de Steven Soderbergh), Haley Bennett, Mia Wasikowska e a veterana Kristin Griffin (que se estreou em Intimidade, de 1978, um dos títulos mais perfeitos da filmografia de Woody Allen)..Tudo isto, importa sublinhá-lo, através de uma realização em que Antonio Campos (americano, de ascendência brasileira, nascido em 1983) confirma a sua fortíssima ligação com a mais nobre herança clássica de Hollywood. Dele já conhecíamos, por exemplo, os admiráveis Depois das Aulas (2008) e Christine (2016). Agora, mais do que nunca, compreendemos que Campos procura reencontrar o fulgor de uma tradição alicerçada na observação crítica e obsessiva dos espaços familiares, sempre marcados pelas tensões entre os destinos individuais e as convulsões colectivas..Lembramo-nos, em particular, de Vincente Minnelli (1903-1986) e de títulos como Deus Sabe Quanto Amei (1958) ou A Herança da Carne (1960), expondo o misto de utopia e tragédia de uma América "interior", devorada pelo seu próprio tradicionalismo. Sem esquecer que, tal como Minnelli nesses filmes, Campos é um sofisticado utilizador do formato largo ("scope"), em particular na descoberta do anti-naturalismo, perturbante e surreal, que pode contaminar um qualquer cenário natural. Como se prova, a sua ambição não é pequena nem superficial..* * * * * [Excepcional]