O filme O Pai, de Florian Zeller, saiu da última cerimónia dos Óscares com dois prémios especialmente significativos: primeiro, o de melhor argumento adaptado, distinguindo o próprio Zeller (tendo com base a peça homónima de sua autoria) e Christopher Hampton; depois, o de melhor ator, para Anthony Hopkins, trinta anos depois da sua consagração, na mesma categoria, por O Silêncio dos Inocentes..Quem viu a cerimónia, lembrar-se-á do insólito anti-clímax. A Academia de Hollywood decidiu encerrar o espectáculo com as estatuetas de atriz e ator (tendo antes entregue a de melhor filme), sendo Hopkins, portanto, o derradeiro premiado. Ora, o ator galês não estava presente porque, como declarou no dia seguinte, não acreditava na possibilidade de ganhar, já que lhe parecia óbvio que Chadwick Boseman (cuja memória homenageou), nomeado por Ma Rainey: a Mãe do Blues, iria ser o vencedor póstumo..Independentemente dos méritos de Boseman e da importância do seu legado, vale a pena dizer que, por saboroso contraste, Hopkins surgia, de facto, como símbolo de um modelo ancestral de representação. A saber: o ator funciona como peça fulcral de uma estrutura dramática em que os enigmas do comportamento humano são elementos decisivos na construção da personagem..Ora, a peça de Zeller colocava um desafio muito particular. E não por causa da "transposição" para uma linguagem cinematográfica - sobretudo porque a personagem do pai, atingido de demência, resiste a ser tratada através das mais tradicionais matrizes "psicológicas". Assim, não se trata apenas (nem sobretudo) de encenar a crescente perplexidade dos outros face às falhas de memória e entendimento da figura central: o filme aposta também em "dar a ver" o desmoronar da sua visão do mundo..Nesta perspetiva, creio que, de facto, a composição de Hopkins é das mais complexas de toda a sua imensa carreira (cerca de uma centena de títulos, desde meados da década de 60). Por um lado, ele começou no cinema num registo que era uma espécie de prolongamento da sua condição de ator "shakespeareano" - recorde-se o primeiro papel importante, em O Leão no Inverno (1968), de Anthony Harvey, contracenando com Peter O"Toole e Katharine Hepburn. Por outro lado, foi encontrando desafios francamente mais interessantes em filmes como O Homem Elefante (1980), de David Lynch, ou O Silêncio dos Inocentes (1991), de Jonathan Demme, que lhe valeu o seu primeiro Óscar..É certo que a espantosa composição de Hannibal Lecter em O Silêncio dos Inocentes, contracenando com Jodie Foster (também "oscarizada"), provocou alguns perversos efeitos colaterais... sendo Hopkins, por vezes, convocado para papéis que tentavam "combinar" a sedução e o carácter maligno de Lecter. Seja como for, nunca abandonou uma matriz clássica de representação que, por exemplo, produziu resultados brilhantes em dois filmes em que foi dirigido por James Ivory: Regresso a Howards End (1992), Os Despojos do Dia (1993), ambos com Emma Thompson..Tendo em conta que Hopkins, aos 83 anos, se tornou o mais velho vencedor de um Óscar numa categoria de interpretação, a sua consagração não deixa de envolver uma curiosa ironia. Assim, num tempo em que a cultura mediática dominante tende a santificar tudo o que é "juvenil" (não poucas vezes colando-lhe o rótulo simplista de "rebelde"), a sua performance em O Pai pode servir também como antídoto cultural, lembrando-nos uma verdade muito básica: a riqueza e complexidade de uma representação nunca dependeram da idade da personagem..dnot@dn.pt
O filme O Pai, de Florian Zeller, saiu da última cerimónia dos Óscares com dois prémios especialmente significativos: primeiro, o de melhor argumento adaptado, distinguindo o próprio Zeller (tendo com base a peça homónima de sua autoria) e Christopher Hampton; depois, o de melhor ator, para Anthony Hopkins, trinta anos depois da sua consagração, na mesma categoria, por O Silêncio dos Inocentes..Quem viu a cerimónia, lembrar-se-á do insólito anti-clímax. A Academia de Hollywood decidiu encerrar o espectáculo com as estatuetas de atriz e ator (tendo antes entregue a de melhor filme), sendo Hopkins, portanto, o derradeiro premiado. Ora, o ator galês não estava presente porque, como declarou no dia seguinte, não acreditava na possibilidade de ganhar, já que lhe parecia óbvio que Chadwick Boseman (cuja memória homenageou), nomeado por Ma Rainey: a Mãe do Blues, iria ser o vencedor póstumo..Independentemente dos méritos de Boseman e da importância do seu legado, vale a pena dizer que, por saboroso contraste, Hopkins surgia, de facto, como símbolo de um modelo ancestral de representação. A saber: o ator funciona como peça fulcral de uma estrutura dramática em que os enigmas do comportamento humano são elementos decisivos na construção da personagem..Ora, a peça de Zeller colocava um desafio muito particular. E não por causa da "transposição" para uma linguagem cinematográfica - sobretudo porque a personagem do pai, atingido de demência, resiste a ser tratada através das mais tradicionais matrizes "psicológicas". Assim, não se trata apenas (nem sobretudo) de encenar a crescente perplexidade dos outros face às falhas de memória e entendimento da figura central: o filme aposta também em "dar a ver" o desmoronar da sua visão do mundo..Nesta perspetiva, creio que, de facto, a composição de Hopkins é das mais complexas de toda a sua imensa carreira (cerca de uma centena de títulos, desde meados da década de 60). Por um lado, ele começou no cinema num registo que era uma espécie de prolongamento da sua condição de ator "shakespeareano" - recorde-se o primeiro papel importante, em O Leão no Inverno (1968), de Anthony Harvey, contracenando com Peter O"Toole e Katharine Hepburn. Por outro lado, foi encontrando desafios francamente mais interessantes em filmes como O Homem Elefante (1980), de David Lynch, ou O Silêncio dos Inocentes (1991), de Jonathan Demme, que lhe valeu o seu primeiro Óscar..É certo que a espantosa composição de Hannibal Lecter em O Silêncio dos Inocentes, contracenando com Jodie Foster (também "oscarizada"), provocou alguns perversos efeitos colaterais... sendo Hopkins, por vezes, convocado para papéis que tentavam "combinar" a sedução e o carácter maligno de Lecter. Seja como for, nunca abandonou uma matriz clássica de representação que, por exemplo, produziu resultados brilhantes em dois filmes em que foi dirigido por James Ivory: Regresso a Howards End (1992), Os Despojos do Dia (1993), ambos com Emma Thompson..Tendo em conta que Hopkins, aos 83 anos, se tornou o mais velho vencedor de um Óscar numa categoria de interpretação, a sua consagração não deixa de envolver uma curiosa ironia. Assim, num tempo em que a cultura mediática dominante tende a santificar tudo o que é "juvenil" (não poucas vezes colando-lhe o rótulo simplista de "rebelde"), a sua performance em O Pai pode servir também como antídoto cultural, lembrando-nos uma verdade muito básica: a riqueza e complexidade de uma representação nunca dependeram da idade da personagem..dnot@dn.pt