“Antes de serem grão-duques, os Médici eram comerciantes de lã”
Foto: Paulo Spranger

“Antes de serem grão-duques, os Médici eram comerciantes de lã”

Lorenzo de’Medici, que vive em Portugal, acaba de publicar 'O Florentino', um romance inspirado no diamante perdido da sua família, cujo nome ainda hoje é sinónimo de riqueza e de patronos das artes.
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Neste seu romance, fala de Anna Maria Luisa, a última representante do ramo ducal da família Médici na Toscânia, irmã do último grão-duque. Qual foi o papel desta princesa na história?

Anna Maria Luisa era princesa-eleitora do Palatinado e também princesa da Toscânia, e o seu papel foi extremamente importante, sobretudo por ser uma mulher, e uma mulher daquela época. Estamos a falar do século XVIII. Ela morreu em 1742. E porque é importante Anna Maria Luisa? Por ter tido esta ideia incrível de proteger o património que tinha herdado de vários ramos dos Médici acumulado ao longo de 300 anos. E viu-se com uma fortuna absolutamente exorbitante. E pensou: “o que vou fazer? Se a distribuir pelos meus primos, dentro de uma geração ou duas, dentro de 50 anos, não sobrará nada. Porque há heranças, vão ser partilhadas. Se houver quatro filhos, os tesouros serão divididos por quatro filhos. Eles venderão quando necessitarem. Daqui a 50 anos não restará nada”. Ela queria que as gerações futuras viessem a Florença para ver o que temos para oferecer, para criar o turismo, e para que durante séculos o nome dos Médici permanecesse sempre na memória das pessoas pelo que conseguimos na arte. Assim, queria que todas as peças ficassem em Florença e não pudessem sair do que era o seu país.

É esse o seu grande legado.

É esse o grande legado de Anna Maria Luisa. Naturalmente, o que ela queria é uma coisa e o que aconteceu realmente foi outra, em parte. Acontece que aqueles que sucederam ao trono da Toscânia, ou seja, a Casa de Habsburgo-Lorena, precisavam de dinheiro. E à noite carregavam carroças de tesouros para enviar para Viena, porque tinham uma guerra contra os turcos que era muito cara. E havia guerra em todos os lugares do Império. E assim a vontade de Anna Maria Luisa não foi respeitada. Mas a visão dela, porque vem de uma mulher, porque vem daquela época, é absolutamente única.

Quando falamos da história da sua família, e escreveu antes um livro sobre ela, fala-se muito de Lourenço, o Magnífico, e também do papa Leão X. Como começou esta família? É uma família de banqueiros que se tornaram príncipes?

Não. É a história de uma família do povo que se torna uma família rica, que se torna banqueira, e que se torna soberana. No início, muito antes de serem grão-duques, os Médici eram comerciantes de lã. E depois da lã passámos a ser cambistas. E de cambistas para banqueiros. Há uma diferença entre o cambista e o banqueiro. O câmbio, na altura, existia porque as pessoas pagavam um florim a alguém e essa pessoa tinha de trocar esse florim por vários piccioli para o poder gastar e comprar coisas. Então existiam os cambistas. Os Médici eram cambistas, pertenciam à corporação dos cambistas. Depois deixaram o câmbio para se tornarem banqueiros. Qual é a diferença? Os banqueiros emprestavam dinheiro ao papa, e aos soberanos de vários países. Mas não emprestavam dinheiro ao público. Era uma coisa a outro nível. E depois, bem, sendo na altura a família mais rica da Europa, tornaram-se soberanos, também devido à influência de terem dois papas seguidos na Igreja Católica. Soberanos porque o imperador Carlos V, Carlos I de Espanha, nomeou o filho do papa, Alexandre de Médici, como Duque de Florença. Foi uma concessão feita por Carlos V por receber ajuda do Papa e ser coroado por Clemente VII. E assim começou a parte aristocrática, mas, no fundo, a história dos Médici é a história de uma família burguesa que mudou de estatuto.

E o poder da família? Disse que a sua família, na viragem do século XV para o século XVI, era a mais rica da Europa, e até dava papas. Qual era o verdadeiro poder dos Médici? Era uma potência na Europa ou era sobretudo uma família muito respeitada?

Era uma potência económica. O facto de ter muito dinheiro dava poder. Se recuarmos algumas gerações antes dos papas da família e de Lourenço, o Magnífico, tivemos o seu avô, Cosme, o Velho, e o seu bisavô, João, que acumularam uma enorme fortuna, que numa iniciativa daquilo que hoje chamaríamos marketing financiavam obras de arte. Obras de arte duradouras, como a cúpula do Duomo por Filippo Brunelleschi. Coisas que se veem ainda hoje e que eles fizeram e que ninguém poderá esquecer. Temos a cúpula do Duomo de Florença graças aos Médici. Portanto, era uma empresa totalmente virada para o marketing. Financiaram jovens artistas que se tornaram grandes pintores. Miguel Ângelo, e tantos outros nomes célebres, trabalharam para o Médici. Então, digamos que a visão de Cosme, o Velho, foi transformar o seu dinheiro em arte, com a visão de que as pessoas iriam admirar essas obras de arte e lembrar-se de nós.

O Florentino

Lorenzo de’Medici

Esfera dos Livros 384 páginas

23,90 euros

Ainda hoje quando pensamos nos Médici, pensamos em riqueza, mas também pensamos em arte e filantropia. Era esse o objetivo?

Esse sempre foi o objetivo. Há algumas figuras mais famosas, como Lourenço, o Magnífico, mas os vários ramos dos Médici, todos os ramos, foram colecionadores. Portanto, não é que Lourenço o Magnífico, o seu filho e o seu neto fossem colecionadores e daí venha a fama. Toda a família fez a sua própria coleção. É por isso que, à medida que iam morrendo, a herança se centralizou na pessoa de Anna Maria Luisa, mas vinha de todos os ramos da família.

Quando falamos de Florença e das Gallerie Degli Uffizi, um dos mais reputados museus italianos, estamos a falar principalmente de um legado dos Médici?

Claro. Os Uffizi foram originalmente criados por Cosme I, o primeiro grão-duque da Toscânia, como escritório para a administração do ducado. Mas ele também começou a colocar lá algumas obras de arte. Utilizou o piso térreo para exibir a sua coleção, mas não ao público, e sim a si próprio. E os pisos superiores eram os escritórios, os uffizi, e por isso ainda hoje o nome do museu. Hoje é um grande museu e pensamos em todos estes tesouros e voltamos sempre à mesma personagem, Anna Maria Luisa, que foi a primeira a doar todos os seus bens aos Uffizi.

Como é que os florentinos hoje olham para a sua história? A Itália foi unificada na segunda metade do século XIX, mas existe ainda hoje uma identidade florentina, e essa está ligada aos Médici?

É uma pergunta de resposta muito difícil, porque só posso falar por experiência própria. Quando vou a Florença e pago com o meu cartão de crédito e as pessoas veem o meu nome, dizem: “Ah, é da família”. Em 2012, fiz um programa televisivo de cinco episódios para o Arte, o canal franco-alemão, sobre o meu regresso à Toscânia e como fui recebido pela aristocracia toscana hoje, porque sempre se falou de grandes lutas entre as famílias nobres de Florença, como os Pazzi ou os Antinori. E aí se pode ver que todos me recebem como se eu fosse o grão-duque, o soberano [risos]. Mas esta é uma visão falsa, porque é uma cortesia moderna; faz já 200 anos que saímos do país. Mas sempre representámos, graças à doação artística, o ideal de bem-estar do país quando o grão-ducado era um país rico e próspero, enquanto hoje a Toscânia é uma região da República Italiana.

No seu livro, que se passa tanto na época de Anna Maria Luísa como na atualidade, existem personagens portuguesas, algumas identificáveis com a realidade, como António Filipe Pimentel, diretor do museu Gulbenkian, ou João de Sousa Holstein, da família do duque de Palmela. Porquê?

É algo que faço em todos os meus livros. Incluo sempre pessoas que conheço. No caso presente, para os amigos portugueses, foi uma pequena homenagem que lhes quis prestar. São pessoas que admiro muito, por isso dou-lhes um pequeno espaço neste romance, que não é central, mas é um sinal da minha admiração.

Há outra relação com Portugal, que é o Florentino, central no romance, ser um diamante que os Médici terão comprado a uma família nobre portuguesa, os Noronha.

Sim. Foi uma negociação que durou 20 anos. A história deste diamante é muito interessante. Pediam um preço tão exorbitante que os Médici hesitaram muito antes de comprá-lo. E andaram a hesitar durante 20 anos. Qual era o problema de base? O problema básico é que os Médici estavam na Toscânia. Neste caso, quem comprou o diamante foi Fernando I, que na altura era cardeal e estava em Roma, e o diamante estava em Portugal. Se eu tiver de comprar um diamante que vale uma fortuna, quero vê-lo antes, e os portugueses não queriam enviar o diamante para ser visto, para evitar que fosse roubado ou algo do género. E então, no final, chegaram a um acordo, e o acordo era que os jesuítas o teriam em depósito e com esse depósito o cardeal Médici poderia ver o diamante e decidir se o comprava ou não. Viu-o e comprou, Por uma quantia absolutamente exorbitante. Foi uma das maiores compras que os Médici fizeram.

Não vamos falar muito sobre o livro para não revelar a história, mas ainda hoje existe um mistério em torno deste diamante.

A história deste diamante é real, não é uma fantasia. Este diamante passou por várias peripécias durante a sua existência, mas é mais falado desde a Primeira Guerra Mundial. Em 1918, o imperador da Áustria-Hungria, Carlos I, foi destronado e forçado a partir para o exílio. Foi para a Suíça, e partiu à pressa. Não tinha muito dinheiro, não tinha muitas coisas, mas colocou o diamante na mala e chegou à Suíça. Passados alguns meses, declarou que o diamante tinha sido roubado e acusou o seu secretário de estar envolvido no complô. Na verdade, existiu uma investigação bastante superficial da polícia suíça no local onde se encontrava o diamante e ninguém pode ser acusado. Mas estranhamente ao mesmo tempo o antigo imperador tenta um golpe de Estado na Hungria para regressar como rei da Hungria, o que é mal calculado porque ele pensava que receberia o apoio do regente da Hungria, que era o almirante Horthy. Mas quando aparece diante de Horthy, Horthy prende-o. E desta vez envia-o para o exílio na Madeira, onde morrerá muito jovem. E a grande questão é: onde é que o antigo imperador arranjou tanto dinheiro para dar um golpe? A suspeita é que tenha vendido o diamante e usado esse dinheiro para financiar a sua operação na Hungria. É uma suposição porque desde então o Florentino está desaparecido há uma eternidade. Está desaparecido há mais de um século.

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