A América segundo Sean Baker tem sido mais ou menos isto: atores de filmes pornográficos que regressam à terra natal (Texas) onde são malvistos, aventuras natalícias de prostitutas transsexuais em Los Angeles, ou mães solteiras e sem dinheiro a viverem em motéis da Florida, nos arredores da Disney World, enquanto as suas crianças desenham o mapa de um mundo mágico longe dos olhares dos adultos. É nesta colorida linhagem filmográfica que encaixa, naturalmente, Anora, o mais recente vencedor da Palma de Ouro em Cannes, um conto de fadas moderno centrado numa trabalhadora do sexo, que acaba por se transformar numa comédia de ação quando os dias cor-de-rosa da protagonista dão lugar a uma intriga familiar internacional que vai de Nova Iorque à Rússia....Entramos na realidade de Anora, ou Ani (a revelação Mikey Madison), através do seu local de trabalho, um clube noturno onde a câmara circula com agilidade, seguindo-a nas danças eróticas e conversas de entretenimento com os clientes, aí mostrando o desembaraço daquela que poderia ser uma veterana, apesar de contar apenas 21 anos. E numa noite, tudo muda: dada a sua ascendência eslava, ela é chamada para atender os desejos de um jovem russo, Ivan, filho de pais famosos e ricos, que rapidamente se deslumbra com o sorriso sedutor e estilo descomplicado de Ani, a quem convida para lhe fazer uma visita na sua luxuosa moradia. Começa assim a relação que vai resultar numa troca de alianças esfuziante em Las Vegas – antes de um intenso capítulo de perseguição que deve culminar na anulação do casamento..Há qualquer coisa de beleza camaleónica em Anora, o filme: o que nos primeiros momentos parece ser um Pretty Woman para os nossos dias, a meio converte-se num One From The Heart – Do Fundo do Coração em terras de Las Vegas, e quando damos por isso já a fantasia sexual e romântica do par se evaporou num cenário em que o inconsequente Ivan se pôs em fuga, deixando Ani às mãos dos capangas do pai, responsáveis por “regularizar a situação” em território americano..Nesse ponto, o encanto e ilusão desaparecem e Sean Baker, arregaçando as mangas à Scorsese e irmãos Safdie, põe esta história sobre rodas, sem travões, no intuito de oferecer à protagonista uma saída animada e pouco óbvia. É aí que reparamos na presença do capanga mais jovem, Igor (Yura Borisov, de Compartimento Nº6), e na luz discreta que ele traz à comédia de ação, garantindo, como se adivinha, a reserva de humanismo que o filme precisava para esmagar a dureza subjacente de uma realidade..Baker é, de resto, um realizador comprovadamente sensível em relação àquilo que filma. Sabe encontrar nas figuras à margem um brilho que o olho quotidiano não capta, e revestir de uma leitura (agri)doce os dramas de uma América escondida, que se deixa visitar orgulhosamente pelo gesto da sua câmara sem cerimónias.