Anne Frank, uma amiga genial

Chega esta quinta-feira aos cinemas a animação de Ari Folman que imagina uma fantasia contemporânea a partir do mais famoso diário alguma vez escrito. À Procura de <em>Anne Frank</em> é o novo filme centrado no mundo da adolescente que se tornou a amiga imaginária de muitos leitores. Mas há mais produções recentes (e não só) que homenageiam a sua memória.
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O desejo expresso por Anne Frank de viver para além da morte continua a concretizar-se através do cinema. A mais recente entrada no vasto catálogo de títulos baseados no seu legado chama-se À Procura de Anne Frank e é da autoria do israelita Ari Folman, ele próprio filho de sobreviventes de Auschwitz, que aqui reflete sobre a superficialidade com que se está a transmitir esse mesmo legado às novas gerações. Mais do que um filme que ilustra a história da adolescente-ícone do Holocausto, esta animação vem revestida de um sentido cândido de manifesto, estabelecendo um diálogo com a situação dos refugiados dos nossos dias na Europa (que agora também ecoa a guerra na Ucrânia). Porém, é a expressão da fantasia que sai vencedora na hora de se pesar as qualidades desta nova abordagem.

Em vez de Anne Frank, a aventura criada por Folman tem como protagonista Kitty, a amiga imaginária a quem Anne dirigiu cada uma das anotações do seu diário em forma de cartas. Alguém que ela descreveu com tanta precisão que só faltava saltar das páginas... Eis pois o que acontece em À Procura de Anne Frank, cuja ação tem lugar num futuro tão próximo que é praticamente o nosso presente. Num dia de tempestade em Amesterdão, um estranho fenómeno ocorre dentro da Casa de Anne Frank, com a figura de uma jovem de cabelo ruivo a libertar-se da tinta no papel do Diário em exposição, permanecendo invisível a todos o que se encontram no interior da casa, mas tornando-se visível quando sai à rua com o Diário roubado.

Kitty cai então na realidade dos tempos modernos para investigar o paradeiro da amiga Anne Frank, que na cidade todos lhe dizem ser o nome de um hospital, de uma ponte, de um teatro e de uma escola. O que significa isso? Bem, para o realizador de A Valsa com Bashir parece significar que o nome "Anne Frank" ficou preso a um simbolismo cultural esvaziado da sua essência e mensagem históricas. São essas que Kitty irá reavivar, depois de perceber que a menina que a inventou morreu em 1945 no campo de Bergen-Belsen...

Sente-se que Ari Folman força um bocadinho a nota didática na relação com o presente, mas, por outro lado, À Procura de Anne Frank tem um fôlego visual tão irresistível, entre a intimidade e a imaginação mais expansiva, que seguir a jornada de descoberta da verdade com Kitty acaba por se tornar a nossa própria via de correspondência mágica e calorosa com a memória de Anne.

No mesmo ímpeto de tentar chegar às novas gerações, #Anne Frank - Vidas Paralelas (2019), das italianas Sabina Fedeli e Anna Migotto, é outra das produções recentes que se debruçam sobre a importância de manter vivas as palavras do Diário, e através delas, a sua jovem autora - estreou-se nas nossas salas em 2020 e está agora disponível na Netflix. Um documentário que recorre à linguagem contemporânea das redes sociais (daí a hashtag do título) para "conectar" a juventude com a tragédia de Anne Frank, mas que não dispensa uma anfitriã old school: Helen Mirren. A atriz lê excertos da obra diarística, sentada no interior de uma réplica do anexo onde se refugiou a jovem judia durante a perseguição nazi em Amesterdão, intercalando-se momentos da sua biografia (desde a infância na Alemanha até à morte em Bergen-Belsen) com relatos de outras sobreviventes dos campos de concentração que tiveram "vidas paralelas" à de Anne Frank; para além de uma adolescente que, à semelhança de Kitty, segue o rasto do destino dessa amiga imaginária. Um filme onde se reencontra a intemporalidade da voz de Anne nestes tempos de diários digitais.

Também no streaming da Netflix se descobre A Magia do Diário de Anne Frank (2015), outro documentário sobre o impacto do livro nos seus milhões de leitores por esse mundo fora, e A Minha Melhor Amiga Anne Frank (2021), drama holandês de Ben Sombogaart, focado no vínculo de Anne com a amiga de carne e osso Hannah Goslar, mais conhecida por Hanneli. Não é tão célebre como a amiga imaginária Kitty, mas foi sempre uma porta-voz ativa da herança de Anne - hoje com 93 anos, surge inclusive numa das cenas finais de À Procura de Anne Frank, retratada em desenho animado.

Em A Minha Melhor Amiga Anne Frank, Hanneli acaba por ser igualmente a protagonista que abre uma janela à evocação da menina espevitada que só conhecemos pelo Diário. Hanneli partilhou com Anne o sabor da vida aos 13 anos, a tentativa de uma adolescência normal debaixo da sombra nazi em Amesterdão, e um dia, depois de uma discussão frívola, dessas que fazem parte das dores de crescimento da amizade, perderam o contacto: Anne foi com a família para o famoso refúgio na mesma cidade e Hanneli ficou a pensar que ela tinha ido para a Suíça. Viriam a reencontrar-se brevemente em Bergen-Belsen, em lados opostos de uma cerca que separava também uma "sorte" diferente. Um momento cruciante que tolda pelo horror a luminosidade das memórias de outros dias.

Não há guião mais perfeito para chegar a Anne Frank do que aquele que a própria deixou escrito. Mas no cinema, O Diário de Anne Frank (1959) de George Stevens é uma das suas melhores adaptações de sempre. Foi o filme com que o realizador americano tentou sarar as feridas interiores do que testemunhou e filmou em Dachau. Afinal, toda a memória do Holocausto passa pela beleza dolorosa das linhas de confidência de uma adolescente à sua amiga imaginária.

dnot@dn.pt

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