Cultura
23 março 2023 às 07h00

O filme para Óscares que já não cabe nos Óscares

Descrição muito linear de um episódio que marcou as lutas dos direitos humanos da população negra na América racista dos Anos 1950, Justiça para Emmett Till, de Chinonye Chukwu, falhou explicitamente na tentativa de se impor na temporada dos prémios. Pouco entusiasmante...

Foi dos filmes que terá ficado à porta dos Óscares, mais especificamente na categoria de Melhor Atriz, na qual havia uma campanha forte da United Artists para a protagonista Danielle Deadwyler ser nomeada. A bem dizer, foi um dos alívios mais festejados esta recusa da Academia: exemplo de "filme para Óscar" ultrapassado. Em 2023, este género de "telefilmes" feitos para obter um prestígio mainstream pouco sentido fazem. No caso de Till fica a sensação de que, além de prestígio, o objetivo era recuperar uma tradição de cinema para glorificar a comiseração. Enfim, intenções à parte, estamos perante uma obra que não é mais do que uma choradeira nada naturalista e, às vezes, fantasiosa, quando se impunha um rigor realista.

A realizadora de Clemência (2019, inédito nas salas portuguesas), Chinonye Chukwu, não traz nada da sua Nigéria e filma segundo as regras da naftalina mais standardizada de Hollywood uma chamada "história verdadeira importante". A saber: um crime que chocou a América e fez debate nas questões dos direitos civis no Mississípi quando um adolescente foi assassinado macabramente. Um crime de racismo em 1955 que ficou célebre pela falta de punição dos responsáveis brancos. O ângulo da história é a luta pela reposição da verdade de sua mãe, uma mulher determinada a levar a tribunal os assassinos.

Emmett Till foi o rapaz negro levado da casa dos primos onde passava férias para ser brutalmente espancado e morto, supostamente porque terá sido atrevido com uma comerciante branca. Uma morte que se tornou símbolo de luta da comunidade afro-americana numa região da América onde o racismo imperou ferozmente. Chukwu realça a luta contra tudo e contra todos de uma mãe que não desistiu de lutar por Justiça. Claro está que Justiça para Emmett Till é o que parece: um filme de tribunal clássico sem querer enganar ninguém, mas sempre com um tom emocional algo histérico e lacrimejante. E esse lado clássico é organizado com uma nada delicada negociação entre a lição histórica e o dever de mensagem de memória.

A realizadora tenta ter ideias de realização, mas é sempre atraiçoada pelo academismo do guião, talvez mais eficaz para um telefilme. Por muito que se sinta uma certa autenticidade nos modos de celebração de um orgulho afro-americano, tudo soa a abuso. Abuso da partitura musical, da choradeira da atriz e, sobretudo, da maneira como o racismo branco é extremado.

Onde Chukwu parece errar menos, ou acertar esporadicamente, é quando baixa o tom e deixa o cerimonial de luto fazer rolar as coisas. É precisamente aí que o filme respira e parece querer ligar com esse conceito de registo de memória relevante. Somente nesses momentos podemos pensar em se poder espreitar por dentro da dor de uma mãe. Nesse sentido, a sequência onde se torna importante mostrar o cadáver violentado do menino Till é um ponto de tremenda força espiritual, o oposto dos restantes apontamentos atmosféricos de um "holocausto" de violência ignóbil do homem branco. Um filme não se faz de uma sequência isolada. Fica apenas a sensação de que provavelmente o estúdio amansou um desejo de uma outra transcendência desta realizadora.

dnot@dn.pt

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