Mariupol está no coração de Cannes
Acerta altura, seguimos um cidadão de Mariupol. Para a câmara, mostra o enorme buraco onde, até ao dia 4 de março de 2022, existia uma casa - a sua casa. Diz-nos que sobreviveram umas duas dezenas dos seus 300 pombos, ele que criava também periquitos. Num gesto sereno e preciso, mete as mãos no meio dos detritos e retira as figuras inanes e coloridas de dois deles - um verde, outro azul.
Entenda-se: estamos longe da obscenidade "pitoresca" que tende a contaminar algumas imagens de guerra e também da "velocidade" formatada de um banal clip televisivo. Registando o dia a dia de um pequeno grupo de sobreviventes, Mariupolis 2, revelado numa das "Séances Spéciales" da selecção oficial do Festival de Cannes, é um prodigioso testemunho, metódico e comovente, da destruição gerada pelo exército de Vladimir Putin em terras da Ucrânia.
O filme foi rodado por Mantas Kvedaravicius, cineasta da Lituânia, antropólogo e professor da Universidade de Vilnius, morto por soldados russos quando tentava sair de Mariupol - faleceu a 2 de abril, contava 45 anos. Foi a sua companheira, Hanna Bilobrova, que conseguiu preservar o material das filmagens, organizando-o com a colaboração da montadora Dounia Sichov.
O número do título decorre do facto de Kvedaravicius já ter assinado um outro filme sobre a cidade ucraniana, intitulado apenas Mariupolis, revelado no Festival de Berlim de 2016. Para ele, tratava-se de revisitar pessoas e locais de modo a dar a conhecer a brutal destruição da cidade e as rotinas dramáticas de um quotidiano assombrado pelo ruído regular de bombas e disparos, por vezes ao alcance do olho clínico da câmara de filmar.
Se é que o cinema possui (ou pode possuir) a capacidade de nos fazer sentir algo das vivências dantescas de um cenário de guerra, Mariupolis 2 é um nobre exemplo de tal capacidade. Não pela procura de imagens-choque, muito menos pelo efeito fácil de uma voz off mais ou menos redundante. Nada disso. Aquilo que aqui encontramos é, antes do mais, a fidelidade dos meios cinematográficos ao tempo, ou melhor, às durações de uma existência recheada de inusitados contrastes.
Em grande parte registado na zona de uma igreja meio destruída onde foram acolhidas algumas dezenas de pessoas, Mariupolis 2 ocupa o coração do festival, relembrando-nos como o cinema é uma entidade viva no interior da história coletiva que connosco partilha. Vemos alguns dos sobreviventes a observarem um detrito de metal de uma bomba, ainda a queimar as mãos. Ou a decidirem como poderão enterrar dois cadáveres que ficaram no meio dos detritos. Ou a lançarem alimento para cima de um telhado, procurando voltar a atrair os pombos que continuam a vaguear por aquela zona... Se nos é permitido usar uma bela metáfora cinéfila, diremos: tão longe, tão perto.
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