Amanhã vamos ser felizes
Ansa (Alma Pöysti) e Holappa (Jussi Vatanen) ou o amor proletário.

Amanhã vamos ser felizes

Por fim, temos Kaurismäki! O muito aguardado 'Folhas Caídas', do grande cineasta finlandês, chega finalmente às salas, e vai embalar corações com a sua delicadeza tragicómica. A vida é triste, mas há sempre filmes que nos ajudam a aguentá-la.
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“E a vida separa aqueles que se amam,/Muito delicadamente, sem fazer barulho.” Os versos do poema Les Feuilles Mortes, de Jacques Prévert, não ficariam nada mal como epígrafe ao novo filme de Aki Kaurismäki, onde dois amantes que ainda não o são experimentam o sabor do desencontro mais do que uma vez, em silêncio (ou com um rádio ligado), aguardando que um resquício de sorte contrarie as forças misteriosas do acaso que os desconecta. Mas... como é possível falar em desconexão em plena era das redes sociais? Bem, estamos no domínio da “kaurismakilândia”, sem ecrãs touch ou sequer um vislumbre da vida em rede (a única vez que aparece um computador portátil é num café, e para efeitos de uma pesquisa de emprego). Aqui, as práticas analógicas ainda são a principal textura do mundo.  

Título que se junta à chamada trilogia da classe operária (Sombras no ParaísoAriel e A Rapariga da Fábrica de Fósforos), Folhas Caídas chega-nos com uma aura de enaltecimento que inclui o Prémio do Júri no Festival de Veneza e o FIPRESCI – Prémio da Crítica Internacional. Sinais importantes para o espectador não familiarizado com o trabalho de Kaurismäki, mas que não espantam quem conhece minimamente a obra deste finlandês, senhor de uma resistência autoral que o mantém acima dos discursos contemporâneos do cinema como “estado das coisas”. No entanto, Kaurismäki tem algo a dizer sobre esse estado das coisas, e fá-lo pelas suas próprias vias formais, como seja um rádio que em Folhas Caídas está sempre a emitir notícias sobre a guerra na Ucrânia. Não há quaisquer conversas sobre o assunto, mas a simples recorrência desse motivo sonoro sublinha o valor da história que se conta. A história de duas almas perdidas na solidão proletária, que se encontram numa Helsínquia de noites de karaoke e rituais de sala de cinema. Por outras palavras: não há guerra que se sobreponha à faísca amorosa de uma troca de olhares ou um beijo na face cujo toque breve se guarda com a mão. 

Aki Kaurismäki é um cineasta de gestos essenciais, com um estilo marcado que só se permite versar sobre o que faz sentido na sua composição da realidade. E, nesse aspeto, Folhas Caídas surge como um dos seus exemplares mais depurados, que nos envolve pela graça das pequenas situações num pequeno filme sem exuberância sentimental, mas com uma capacidade imensa de comover pelo terno desamparo das personagens. Estas, figuras que baixam o lume à expressividade para não retirar protagonismo ao delicioso jogo cromático das roupas e dos cenários. Em que outro universo as paredes verdes ou azuis, as jukeboxes, os casacos de cabedal combinados com camisas vermelho-bordeaux e homens a escovar os sapatos para irem beber cervejas é tão orgânico? 

Na noite em que os olhos de Holappa (Jussi Vatanen) e Ansa (Alma Pöysti) se cruzam num karaoke, o homem com ar de jovem David Lynch escovou os sapatos e passou o pente pelo cabelo. É um metalúrgico e acha que tem de se comportar como um “homem de barba rija”, o que implica ir aumentando as doses de álcool. Já Ansa, empregada num supermercado, prestes a ser despedida (por um absurdo que traduz a sociedade do desperdício), vive a sua solidão sem analgésicos, apenas preocupada em garantir um salário para pagar as contas. Nessa primeira vez, não trocam uma única palavra. Mas quando o destino proporciona novo encontro, seguido de desencontros, ele convida-a para tomar café e depois ir ao cinema – vão ver nada mais nada menos do que um certo filme de zombies assinado por Jim Jarmusch. 

À saída, enquanto os dois comentam laconicamente a película a que acabaram de assistir, a nossa atenção volta-se para os cartazes que espreitam na vitrina, em particular o de Breve Encontro (1945), de David Lean, que é tudo menos uma referência inocente. Nesse magnífico melodrama, baseado numa peça de Noël Coward, um homem e uma mulher conhecem-se numa estação de comboios e passam a encontrar-se regularmente, ponderando cometer adultério. Ora, o cinema onde Holappa e Ansa se encontram tem a mesma carga simbólica que a estação ferroviária do filme de Lean: é o ponto de encontro a que as personagens regressam para cumprir um desejo romântico que as libertará da solidão operária. Kaurismäki até gostava mais de chamar “trilogia dos vencidos” a estes filmes que priorizam a condição dos trabalhadores, mas Folhas Caídas representa uma nova nota da esperança, que nos faz sair da sala a levitar. 

A verdade é que é difícil conter o entusiasmo perante este e cada novo filme de Kaurismäki, desde logo, porque há um amor pelas personagens, pelos seus traços castiços de humanidade, que dispensa elaborações psicológicas. Rimo-nos perante muitas frases de diálogo e a secura cómica com que são pronunciadas, mas ao mesmo tempo apetece chorar perante a beleza de todo o afeto associado às formas deste cinema. E o que dizer da cadela de rua acolhida por Ansa, que se torna sua companheira fiel? Ou do concerto de rock, com uma audiência solene, onde se dá pela presença do jovem realizador finlandês Juho Kuosmanen? Kaurismäki fala às novas gerações, sim, mostrando-lhes que o que une as pessoas não é uma caixa digital de comentários... 

Que prazer este de anunciar a primeira obra-prima do ano – daquelas que não gritam que o são mas sussurram cá dentro.  

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