Álvaro Gago - um humanista ao serviço do cinema
Em Espanha a pátria é feminina, tal como em Portugal. Não há “fatherland” para ninguém. Em Mátria, a pátria é mesmo matriarcal e rima com o sangue quente de uma mulher com M maiúsculo: Ramona. Mas antes de ser uma história sobre identidade feminina, é um filme que coloca a questão da Galiza como terra de mães fortes e determinadas. Frágeis, sim, mas nunca vítimas. É esse o trunfo de um filme que impressionou na Berlinale 2023, uma das mais gratificantes revelações do cinema galego, surgido no mesmo ano em que O Corno do Centeio, de Jaione Camborda, o surpreendente vencedor da Concha de Ouro do Festival de San Sebastián.
“Quis fazer um filme sobre uma mulher esquecida, alguém que não aparece nos livros de História. Por outro lado, trata-se de uma matriarca, aquelas que levam tudo às costas: família, trabalho e toda a organização. Mas essas matriarcas estão totalmente afastadas do poder real e político. Afinal, uma matriarca é um erro de conceito... E isso existe tanto na zona costeira da Galiza. Mulheres que ficavam sempre na Galiza quando ao longo dos anos os homens emigravam. Quis chamar Mátria ao filme para colocar em discussão o matriarcado e a Matrilinearidade, a lei que permitia que as mulheres pudessem herdar propriedades. A Galiza é considerada um dos recursos mais matriarcais do mundo e sobre isso sobram muitas questões históricas, passando por todo o regionalismo galego e toda a sua vontade de se afastar do castelhano e do centralismo espanhol. E a sociedade espanhola é imensamente patriarcal! É engraçado: em toda a Espanha a mulher sempre trabalhou dentro de casa, mas na Galiza não: trabalha dentro e fora de casa”, começa por dizer.
Enquanto a conversa se desenrola, o realizador galego confessa estar espantado por ter conseguido colocar este filme no mapa: sucesso de bilheteira e ida aos Goya, prémios da Academia vizinha. Para ele o cinema é um ato de recriar algo perto da experiência mais humana: “esse humanismo é aquilo que mais me interessa! O cinema, para mim, é como que um canal para a criação de uma experiência coletiva humana. Luto muito por uma maneira de fazer as coisas, do género: prefiro que digam que sou melhor pessoa do que cineasta... Isso deixa-me orgulhoso! Straub e Huillet tinham essa ética de estarem próximos das pessoas”.
A referência cinéfila faz sentido, mesmo quando o seu tipo de cinema talvez esteja mais próximo de uma abordagem politizada, porventura à medida de um Ken Loach: “filmo um paradoxo: estamos na União Europeia, mesmo com todos os movimentos livres, neste sistema atual, temos uma mulher como a Ramona obrigada a ter mais do que um emprego. E isto acontece tanto hoje na Galiza... Há tanta precariedade laboral. Enfim, não é só aqui... Por acaso, a Espanha até tem uma política mais descentralizada do que a França mas a força dominante da capital é aqui muito forte. A geografia afeta e nós aqui temos necessidades diferentes! Temos uma terra de minifúndios, coisa em completa oposição com o lado histórico espanhol. As políticas a aplicar aqui têm de ser muito diferentes, algo agravado por não existir um ministério do mar ou da pesca. Na Galiza não é possível apostar em coisas locais”.
Filme político? Sim, mas uma história de uma mulher que numa situação difícil resiste a uma relação com um homem que não a trata bem, que tenta conectar-se com uma filha com outros valores e que não desiste das cumplicidades com as amigas reais. A Ramona do filme é também um autêntico milagre da atriz Maria Vásquez, verdadeira força da Natureza, um prodígio de realismo, exemplarmente agraciado pela nomeação de melhor atriz nos Goya, os prémios da Academia espanhola.
“Com a Maria tive uma relação com muitos níveis, mesmo com todas as nossas diferenças. No final, diria que ela é uma das criadoras do filme. Com ela acabei por partilhar todas as minhas opiniões, os castings para os outros papéis e em todas as outras decisões acabou por ter voz. Ambos falámos muito desta personagem e da própria essência do filme. Em suma, o filme acaba por ficar com aquilo que eu já trazia e o input da Maria. Agora que me conheço melhor sou um cineasta que precisa de atrizes/atores criadores. Ela fez um trabalho justíssimo”, confessa este cineasta.
Acerca de uma possível interação maior entre Portugal e a Galiza no cinema, Gago nem gagueja: “Faz todo o sentido! Acredito que se normalizarmos a presença dos portugueses nos ecrãs teríamos muitas mais oportunidades... E poderíamos absorver toda a riqueza cultural. Mas também estou consciente que há esforços individuais para fazer essa ponte. Em Portugal conheço gente muito empática, gente que entende que a fronteira é irreal. É pena não haver entre nós uma relação institucionalizada. Existe uma enorme identificação entre Portugal e Galiza, não só entre o povo nortenho”.
Mátria, neste turbilhão de número estúpido de estreias “art house”, arrisca-se a passar despercebido. O cinema espanhol merecia melhor sorte neste nosso mercado surreal...
Em Santiago de Compostela