Alfonso Cuarón: uma vitória mexicana para além de todos os muros
Não há muros entre os cineastas mexicanos e a indústria de Hollywood. Mesmo o espectador menos seduzido pelos faustos do imaginário cinematográfico não terá ficado insensível ao simbolismo do abraço de Guillermo del Toro e Alfonso Cuarón no palco do Dolby Theatre: o primeiro, mexicano, entregava o Óscar de melhor realização ao segundo, também mexicano.
Prolonga-se, assim, um impressionante "reinado" de cineastas mexicanos na história recente dos prémios da Academia de Hollywood. Nos últimos seis anos, o Óscar de realização foi cinco vezes para mexicanos: em 2014, o mesmo Cuarón ganhou graças a Gravidade; em 2015 e 2016, Alejandro González Iñárritu venceu com Birdman e The Revenant: o Renascido (tendo o primeiro desses títulos arrebatado também a distinção de melhor filme); em 2017, o Óscar foi para um americano, Damien Chazelle, com La La Land; o ano passado, A Forma da Água, que deu a vitória de Guillermo del Toro, seria também eleito filme do ano.
Convenhamos que não será esta notável performance mexicana que irá dissuadir Donald Trump de construir o seu muro na fronteira com a pátria de Cuarón, Iñárritu e del Toro. Seja como for, mesmo com uma cerimónia tão pouco espetacular como foi esta 91ª edição dos Óscares, não há dúvida que Hollywood consegue contrapor à ideologia da separação dos povos um imaginário de diálogo e integração.
Sublinhe-se, aliás, o modo como Rami Malek (melhor ator por Bohemian Rhapsody), ao recordar a sua condição de cidadão americano nascido de pais egípcios, serviu também para sublinhar o facto de os EUA serem um país organizado a partir de muitos movimentos migratórios.
Tudo isto se amplia no seu simbolismo se tivermos em conta que Cuarón ganhou com um filme visceralmente mexicano, o belíssimo Roma, mas dir-se-ia que sem pátria de produção. Porquê? Porque a sua origem na plataforma de streaming Netflix lhe confere a dimensão insólita de objeto gerado nos circuitos virtuais, concebido, por definição, para uma difusão global, literalmente sem fronteiras (até porque, convém não esquecer, o número de assinantes da Netflix em todo o mundo se vai aproximando dos 150 milhões).
Em boa verdade, ninguém falou dessa fronteira que desapareceu. A saber: a que separava a produção cinematográfica para as salas escuras dos produtos gerados nas (e para as) plataformas de "streaming". Algumas semanas antes da cerimónia dos Óscares, quando ganhou um Globo de Ouro (também como realizador), Cuarón disse que se sentia beneficiado pelo melhor de dois mundos: afinal de contas, e apesar de todas as polémicas, Roma estava na Net e nas salas. Provavelmente, o futuro do cinema dependerá da proliferação de realizadores felizes como ele. Para além de todos os muros.