"O´Neill (Alexandre), moreno português, / cabelo asa de corvo; da angústia da cara, / nariguete que sobrepuja de través / a ferida desdenhosa e não-cicatrizada.” Assim se apresenta o poeta no soneto Auto-Retrato, aplicando a si mesmo a ironia, mais do que o sarcasmo, com que olhava tudo o mais - o país em que a ditadura se perpetuava além de todas as previsões e análises, os domingos pachorrentos dos lisboetas, os casamentos em que o hábito, e até o nojo, há muito tomaram o lugar do amor. Numa entrevista que haveria de fazer história, também por a assinar Fernando Assis Pacheco (Jornal de Letras, 6/7/1982), Alexandre O’Neill afirmava: “Sem pieguice, digo-lhe que sempre sofri Portugal, tanto no sentido de não o suportar (como todos nós, aliás), como no sentido de o amar sem esperança.” Assim era Alexandre (ou o Xana, como lhe chamavam os mais próximos): de verve implacável na leitura do quotidiano, mas a disfarçar a ternura como um adolescente esconde, braço atrás das costas, os primeiros cigarros..“Alfacinha de gema”, Alexandre O’Neill nasceu no número 30 da Avenida Fontes Pereira de Melo, a 19 de dezembro de 1924. Era o segundo filho de José António Pereira de Eça O’Neill de Bulhões, empregado bancário, e de sua mulher, Maria da Glória Vahia de Barros de Castro, que haveria de sobreviver ao filho. De referir - porque isso terá importado na formação do miúdo - que a avó paterna foi Maria O’Neill, escritora, contemporânea de Ana de Castro Osório e Virgínia de Castro e Almeida, mulher de comportamento livre e corajoso, na vida pública, como na privada..Como escreve Maria Antónia Oliveira, em Alexandre O’Neill, Uma Biografia Literária, a casa onde nasceu, que era dos avós paternos, haveria de fazer as delícias de Alexandre: “Mais propícia às brincadeiras infantis do que o lar paterno era a casa dos avós Vahia de Castro, onde o Xana tinha nascido (…), fronteira ao antigo mercado das Picoas. Este casarão de catorze divisões - albergava o consultório e o estúdio fotográfico caseiro do avô - tinha um atrativo especial inexistente em casa dos pais: um corredor muito comprido, que dava a volta a toda a casa (…). Alexandre andava de triciclo, Maria Amélia (a irmã mais velha) de trotinete.”.Em 1943, com 17 anos de idade, publicou os primeiros versos num jornal de Amarante, o Flor do Tâmega. Apesar de ter recebido prémios literários no Colégio Valsassina, esta atividade não foi particularmente incentivada pela família, esperançosa de que o jovem se dedicasse mais aos estudos e se formasse com um curso superior. .O fascínio pelo Surrealismo.Datam do ano de 1947 duas cartas de Alexandre O’Neill que demonstram o seu interesse pelo Surrealismo, dizendo numa delas possuir já os manifestos de Breton e a Histoire du Surrealismo, de M. Nadeau. No ano seguinte, integrará o grupo surrealista de Lisboa, ao lado de Mário Cesariny, José-Augusto França, António Domingues, Fernando Azevedo, Moniz Pereira, António Pedro e Marcelino Vespeira. Como nos diz Maria Antónia Oliveira: “O surrealismo foi uma espécie de espelho em que O’Neill se reviu, foi uma grande aventura com a qual aprendeu e se libertou imenso. Mesmo quando se afastou do grupo, continuou a apresentar muitos elementos surrealistas na sua obra.”.Por alturas da Exposição do Grupo Surrealista de Lisboa, em 1949, O’Neill publicou A Ampola Miraculosa como um dos primeiros números dos Cadernos Surrealistas. Mas estes são também os tempos da paixão pela francesa Nora Mitrani, que esteve na origem de um dos seus poemas mais emblemáticos, Um Adeus Português. Também por causa desses amores contrariados pelas autoridades, que negaram o passaporte ao poeta, nasceria o retrato completamente surrealista que dele fez Fernando Lemos. O próprio contaria mais tarde, no âmbito de uma retrospetiva sua, como tudo se passou: “O O’Neill andava numa depressão por causa da Nora Mitrani, completamente apaixonado e ela ia embora do país. Quando ele se veio queixar, sugeri irmos para o ateliê. Fomos a pé até ao ateliê, chamei a Nora e o Vespeira e disse-lhes: Vamos fazer uma lavagem cerebral a esse gajo aí, que anda com a cuca fundida. E fizemos esta fotografia da lavagem cerebral que tem sempre um sentido estranho de invasão da personalidade das pessoas.”.Um Adeus Português, embora fosse um lamento pelo amor perdido, manifestava já o olhar irónico, mas amargurado, com que O’Neill encarava o Portugal do seu tempo, “estacionado” na mediocridade da ditadura: “(…) Mas tu não mereces esta cidade / não mereces / esta roda de náusea em que giramos / até à idiotia /esta pequena morte /e ao seu minucioso e porco ritual / esta nossa razão absurda de ser.”É um olhar que reencontramos em poemas como Os Velhos de Lisboa: “Em suma: somos os velhos,/ cheios de cuspo e conselhos,/ Velhos que ninguém atura/ a não ser a literatura/ E outros velhos. (os novos/ afirmam-se por maus modos/ com os velhos). Senectude/ É tempo não é virtude…/ Decorativos? Talvez…/ Mas por dentro era uma/ vez…” Ou ainda em A Pluma Caprichosa ou Domingos de Lisboa: “Mas serás tu a minha «querida esposa»/ Aquela que se me ofereceu menina?/ Oh! Guarda os teus beijos de aranha venenosa!/ Fecha-me esse olho branco que me goza/ E deixa-me sonhar como um prédio em ruína!…”.A relação agridoce com o país manifesta-se na forma mais aguda no poema Portugal: “ó Portugal, se fosses só três sílabas de plástico, que era mais barato! (…) Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,/ golpe até ao osso, fome sem entretém,/ perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,/ rocim engraxado,/ feira cabisbaixa,/meu remorso,/ meu remorso de todos nós…”Como nos diz Maria Antónia Oliveira, “O’Neill era frequentemente considerado um satírico e não gostava disso. É evidente que é muito crítico com a vida portuguesa do seu tempo, mas fá-lo com uma ironia que não se demarca. Ao contrário do Eça de Queirós, que olha o país de cima, considerando tudo uma choldra, O’Neill também se ri de si mesmo. Participa da sociedade que critica, até porque não se levava muito a sério.”.Também por causa disso, o poeta rejeitava quaisquer comparações, que eram frequentes, com Bocage ou Nicolau Tolentino. Segundo a biógrafa, O’Neill “era muito avesso a admitir influências, mas não rejeitava a ligação com Cesário Verde. A segunda mulher dele, Teresa Patrício Gouveia, contou-me como ele lhe lia vários poemas de Cesário.”O’Neill, no entanto, não esgotava o seu desassossego nas palavras. Em 1953, esteve preso 21 dias no Estabelecimento Prisional de Caxias, por ter ido esperar Maria Lamas, regressada do Congresso Mundial da Paz em Viena. A partir daí, passou a ser vigiado pela PIDE. Declaradamente oposicionista, não militou, todavia, em nenhum partido político, nem durante o Estado Novo, nem a seguir ao 25 de Abril. Conhece-se-lhe apenas uma breve ligação ao MUD juvenil, na altura em que deixou o Grupo Surrealista de Lisboa..Uma criatividade transbordante.A partir de 1957, começou a escrever para jornais, primeiro esporadicamente, depois, com crescente regularidade, assinando colunas no Diário de Lisboa, A Capital e, já nos anos 1980, no Jornal de Letras. Participou em vários programas da RTP, incluindo o concurso de talentos Prata da Casa, apresentado por Fialho Gouveia, em que integrava o painel do júri. Como nos diz Luís Leal Miranda (autor da peça Um Poeta em Forma de Assim - Visita guiada à cabeça de Alexandre O’Neill, apresentada recentemente no Teatro lu.ca - Luís de Camões), “ele foi muito popular no seu tempo, que é uma coisa que não acontece com os poetas de hoje. Não escrevia de uma forma erudita, embora fosse muito complexo, tendo sido aquilo a que podemos chamar uma estrela pop.” Para essa popularidade terá contribuído a passagem do poeta pelo mundo da publicidade, tendo ficado especialmente famoso “Há mar e mar, há ir e voltar”, que, como nota Maria Antónia Oliveira, “se tornou quase um provérbio, o único provérbio com autoria conhecida.”Encomendado pelo Instituto de Socorros a Náufragos, para prevenir os afogamentos nas praias portuguesas, o slogan era, no entanto, uma segunda tentativa de O’Neill, depois de ter sido chumbada a primeira hipótese: “Passe um Verão desafogado”..Mas para o anedotário de uma certa Lisboa boémia, que o poeta frequentou com empenho quotidiano, ficariam outras propostas subversivas como “Vá de Metro, Satanás” (proposta de publicidade para o metropolitano de Lisboa) ou “Bosch é Brom” (alternativa pícara ao slogan Bosch é bom).O’ Neill fez ainda parte da redação da histórica revista Almanaque (1959-61), com grafismo de Sebastião Rodrigues, onde também colaboravam José Cardoso Pires, Luís de Sttau Monteiro, Augusto Abelaira e João Abel Manta. Escreveu crónicas sobre temas vários (mais tarde reunidas no livro Uma Coisa em Forma de Assim) desde Eusébio ao canivete suíço, o Diabo e o fado canalha. .Mas também há textos pessoais, em que evoca a infância na casa da família em Amarante ou as brincadeiras do pai com os dois filhos. Entre as suas obras mais celebradas pela posterioridade está ainda o fado Gaivota, que Alain Oulman musicou e Amália Rodrigues interpretou.Como sugerem os seus poemas, O’ Neill foi também homem de muitos amores, entre os quais as duas mulheres com quem se casou: Noémia Delgado, mãe do seu primeiro filho (o fotógrafo Alexandre Delgado O’Neill, 1959-1993), e a futura secretária de Estado da Cultura, Teresa Patrício Gouveia, com quem teve um segundo filho, Afonso Gouveia O’Neill.Na biografia escrita por Maria Antónia Oliveira, o realizador José Fonseca e Costa (já falecido), amigo do poeta recordava-o como um sedutor, com um assinalável sucesso entre as senhoras: “(…) Com aquela cara de diabrete, aquele ar frio, de pessoa incapaz de ternura, era um homem que se desfazia em ternura.”.Mas esta vida, que gastava como um fósforo (na descrição usada por Assis Pacheco, na histórica entrevista ao JL), começou a desvanecer-se em 1976, com um primeiro ataque cardíaco. Em 1984, sofreu um AVC, que se repetiria, dois anos depois, em abril de 1986, levando-o a uma hospitalização prolongada. Morreu na sua Lisboa, a 21 de agosto de 1986, aos 61 anos. Poucos meses depois sairia uma antologia de textos, que ele próprio ainda preparara, com fotografias do filho mais velho, a que deu o título de Tomai lá do O’Neill.