Aleluia para 'Djon Africa' no Festival de Jerusalém
No tórrido calor de um festival que quer mostrar filmes israelitas novinhos em folha e uma seleção do melhor dos grandes festivais do mundo, a passagem do filme português Djon Africa, de João Miller e Filipa Reis, teve quase uma carga de golpe de graça. Numa sala bem composta, esta viagem a Cabo Verde dos nossos dias causou um grande impacto e é, sem exagero, um dos grandes títulos deste festival.
Djon Africa (sem data de estreia em Portugal) é a história de Miguel, um rapaz cabo-verdiano nascido em Portugal que vai até ao Tarrafal, em Cabo Verde, para tentar encontrar as suas raízes e o seu pai. Num registo que mistura o docudrama e um certo (e feliz) realismo mágico, este casal de realizadores filma um imaginário africano com uma frescura desembaraçada e um respeito imenso pelas personagens. Um filme de estrada capaz de celebrar a imensa beleza de um país e que é também um conto sobre a passagem à idade adulta. O espectador, a dada altura, dá por si a flutuar nestas imagens que se elevam como uma morna ao fim da noite. Mais outro atestado de qualidade da Terratreme, produtora nacional que começa a criar uma griffe no circuito dos festivais de bom gosto. No fim, ouvimos o cantor Pedrinho cantar Aleluia e pensamos como Jerusalém é a cidade perfeita para uma obra como esta.
Veja aqui o trailer de Djon Africa:
Jerusalém é igualmente um festival que homenageia Christian Petzold, cineasta alemão que foi alvo de uma retrospetiva. Petzold fez questão de apresentar na Cinemateca (casa do festival) o seu mais recente filme, Transit, reflexão inteligentíssima sobre uma ideia de fim da Europa.
Noa Regev, a jovem diretora do festival e da Cinemateca, contava-nos hoje que escolhe os filmes com total liberdade e só lamentava não conseguir mais cineastas consagrados devido aos boicotes: "Fazer um festival hoje numa das cidades mais complexas do mundo é um desafio. Mas tenho de referir que temos liberdade para escolher todos os filmes que queremos. Não há qualquer tipo de censura por muito que haja pressões. Temos liberdade completa. Neste ano não temos nenhum filme da Palestina porque não é fácil um cineasta palestiniano conseguir enviar o seu filme. Não foi mesmo possível."
Sobre o cinema novo israelita, a diretora salienta que cada vez mais os jovens israelitas filmam as complexidades de Israel contemporânea sem perderem a noção de gesto artístico. Pela amostra das curtas-metragens em competição, as palavras de Noa fazem ainda mais sentido, em especial aquelas provenientes da famosa Escola de Cinema de Jerusalém Sam Spiegel. "Se no ano passado a temática da moda era o ponto de vista feminista, neste ano recebemos muitos filmes que abordam o tema da ortodoxia mais conservadora", remata a diretora.
Entre estes filmes está The Unorthodox, de Eiran Malka, história verdadeira sobre o primeiro partido ortodoxo a ter lugar no Parlamento israelita. Uma comédia palavrosa que abriu o festival e foi o primeiro grande caso de simpatia entre a muita imprensa internacional aqui presente. Malka filma uma comunidade muito fechada com um humor judeu não ofensivo mas muito astuto. Será com toda a certeza um filme israelita que poderá fazer muito bem o circuito internacional de cinemas arthouse.
Quem por cá está acreditado é convidado para um mergulho cultural que inclui provas de cozinha kosher, ida aos bairros judeu, muçulmano e cristão na Cidade Velha e uma visita à escola Ma'aleh, onde foram mostrados filmes feitos por estudantes ortodoxos de cinema. Uma escola onde se filma a experiência judia mais ortodoxa e onde metade dos estudantes são mulheres. O cinema israelita é o melhor espelho para o mundo perceber a eterna complexidade de uma religião e também toda a questão do conflito israelo-palestiniano sem o filtro dos noticiários televisivos.
Enquanto isso, num encontro com críticos locais, há quem nos confesse que o atual estado dos apoios ao cinema vive dias de grande incerteza, em especial pela alergia da ministra da Cultura. Marlene, crítica de cinema, mãe de sete filhos e judia ultraortodoxa, fala-nos de um circuito fechado de filmes underground feitos por mulheres religiosas. Filmes que só podem ser vistos por mulheres e que apenas falam das suas comunidades observadas pelo ponto de vista feminino. Um segredo que nem os outros críticos judeus conhecem e que é composto apenas por filmes feitos com poucos meios (subsidiados pelos rabis) e mostrados em locais secretos. Um cinegueto falado em yiddish, exportado também para as comunidades mais ortodoxas judaicas nos EUA, na Rússia e na Alemanha. Uma cinematografia escondida que, segundo Marlene, tem um mercado de cerca de 500 mil acólitos.