Absorver o espírito da selva

Mergulho sem chapão numa comunidade da Amazónia equatoriana. Águas do Pastaza, de Inês T. Alves, esteve na Berlinale de 2022 e chega agora aos cinemas numa altura de congestionamento de estreias cirúrgicas portuguesas. Filma-se a infância num paraíso.

Não é exagero gritar bem alto que as longas documentais do cinema português vivem um momento feliz. Em semanas de dobradinha (na próxima estreia-se também O Que Podem as Palavras), sente-se um entusiasmo do mercado de exibição para objetos que antes ficavam apenas confinados à exibição em festivais ou na RTP. E este Águas do Pastaza pede cinema, pede um ecrã para sentirmos a sensualidade da humidade e do verde da selva. São 61 minutos de uma aventura real que experimenta algo raro: um olhar real perante uma comunidade de indígenas em que o lugar da felicidade ainda é possível.

Inês T. Alves é cineasta sim, por muito que este seu processo possa convocar dúvidas se não poderia ser um ensaio académico filmado por ela própria. No seu jogo recreativo percebe-se que há uma ideia de cinema clara, afastando-se do ensaio sociológico. É uma câmara que se interessa pelas personagens, neste caso: uma comunidade de índios na floresta tropical amazónica, onde as crianças vivem em sintonia com a natureza à sua volta. Entre as águas do rio Pastaza e o topo das árvores, são seres capazes de viver um quotidiano de forma autónoma e com um forte sentido de colaboração. Um mundo sem adultos, sem barreiras.

Meninos e meninas que caçam e pescam numa simbiose rara com a natureza. Um lugar onde é ainda possível celebrar um conceito de aventura da infância. Conceito esse sem os clichés do medo ou da bandeira histérica da mensagem de solidariedade, não é mesmo por aí.

Inês T. Alves é uma observadora ágil dessa partilha entre as crianças e a floresta. Marimba-se para os "cuidados" do documentário "ambiental", está sim comprometida em registar esta ideia de uma infância ao ar livre e em comunhão com o meio ambiente e tornar-se cúmplice desse jogo, dessa visita guiada. De forma orgânica, nascem imagens em estado de deslumbramento, ambientadas com uma partitura musical vinda dos sons dos animais e do vento tropical. Será esse ideal de som dos dias e das noites da selva. Inês oferece-nos um mundo para nos fazer parar o nosso mundo, tão simples como isso... quase como que uma festa da natureza, ela que ficou em Suwa, a aldeia destes meninos índio, dois meses e cedo foi recebida como se de família se tratasse.

Documentário etnográfico? Dificilmente, só se se for o etnográfico lúdico. O conceito é estarmos perante uma harmonia própria de uma brincadeira de miúdos, mesmo quando se percebe que esta é uma boleia guiada com organização segura.

As crianças de Suwa, além da harmonia com a natureza, transmitem uma ideia de paz refletida na maneira como se relacionam entre si e no próprio espaço de "trabalho" e de sobrevivência. Por vezes, são confrontadas com as tecnologias dos telemóveis e do poder da internet. É aí que percebemos que não são aliens, são apenas crianças iguais às nossas, disponíveis para todo o tipo de curiosidade. São felizes e sabem disso, coisa impensável... São ainda uma fonte luminosa para remeter a plateia à alegria da infância numa selva amazónica onde ainda se sente uma utopia - o paraíso pode passar por aqui. Ou utopia ou grito de resistência das comunidades de indígenas da Amazónia.

dnot@dn.pt

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