“A ópera combina todas as artes performativas. Por isso é a mais poderosa de todas elas”
Está a encenar a ópera Jenufa, de Leos Janacek, no CCB em Lisboa. Na sua carreira já encenou a maior parte das obras deste compositor checo. O que o fascina nele?
Já encenei sete óperas de Janacek - quase todas as suas obras maiores. Ainda há dias estreámos em Berlim As Excursões do senhor Broucek até à Lua. É o meu compositor preferido. Janacek e Handel são os meus dois compositores de ópera favoritos. Não têm nada em comum, mas adoro-os aos dois. Por razões totalmente diferentes. Quase por razões opostas. Quanto a Janacek, ele é uma escola de um só. Não se pode comparar a ninguém da sua época. É uma voz individual, mas é um criador fantástico de música, teatro e drama. O que é mais invulgar nele, para além da sua música fantástica, é que a maior parte dos compositores, quando pegam num libreto e o põem em música, este torna-se mais longo do que o texto. Com Janacek fica mais curto. O texto sai mais curto quando o ouvimos com música do que quando o lemos, porque ele tem uma concisão incrível na sua linguagem. Por isso, a experiência de uma ópera de Janacek é muito intensa, muito forte, muito elementar. Quando se ouve e se vê uma ópera de Janacek, não é como nenhuma outra coisa, porque é tão intensa e tão próxima... Ele não está interessado em glamourizar a música ou em a sentimentalizar. Tem uma espécie de honestidade espantosa para consigo próprio. E eu também estava muito interessado nos padrões de discurso, na forma como a música pode estar relacionada com o discurso. Há um grande poder na forma como as palavras são ditas.
Essa é uma das razões por que esta história escrita há mais de um século continua a impactar no público hoje?
Isso acontece com todas as óperas. Eu quando estou a encenar - e não enceno só óperas, enceno também peças de teatro, musicais - penso sempre nas histórias como se tivessem acabado de ser escritas. Porque quando estas obras foram escritas, quase sempre os compositores estavam a tentar encontrar algo que se ligasse ao seu tempo. E podem ter passado dois, três, quatro ou cem anos, mas acho que muitos realizadores têm uma ideia semelhante: queremos que o público se identifique completamente com o que vê e ouve. Porque nós não mudámos tanto assim enquanto seres humanos.
São sentimentos universais, personagens universais, a época é o que menos importa?
Sim, são situações humanas. A ópera tem como ponto alto o amor e a morte. Esses são normalmente os dois pilares de uma ópera. Eros e Thanatos. E encontramos os dois em Jenufa. Quando o espetáculo começa, Jenufa já está grávida, secretamente, está apaixonada por um tipo que não quer saber dela. Ele só a acha divertida, mas fica aborrecido com ela quando ela se torna exigente em relação ao bebé. E há outro tipo que está apaixonado por ela, que ela não ama no início e que, na verdade, a magoa. Ele magoa-a porque está tão frustrado por ela não lhe prestar atenção. E dessa ferida nasce a sua relação que, mais tarde, cresce. É uma peça muito invulgar porque é também sobre o perdão. Ela acaba por o perdoar. E temos a madrasta, que está tão escandalizada com esta gravidez, que esconde o bebé e acaba por o matar para tentar melhorar a vida de Jenufa. É uma abordagem terrível e doentia. Mas Jenufa acaba por perdoá-la por ter destruído a sua vida, por ter matado o bebé, por tudo. Há também algo de profundamente cristão na peça. Por um lado, temos pessoas que defendem os valores cristãos - que dizem ‘não podes fazer isso. Isso é pecado’. Mas que fazem coisas muito pouco cristãs. E depois temos Jenufa, que é completamente inocente e que é capaz de perdoar. É uma história muito poderosa.
Qual é o seu processo para encenar uma ópera?
A ópera é a mais complexa das formas de arte. Chama-se “opera” - plural de opus - porque junta tudo. É algo muito complexo, com uma experiência altamente colaborativa. Temos designers, coreógrafos, músicos, atores, cineastas quando usamos vídeo, etc. E também os técnicos, os artesãos, os costureiros, os fabricantes de perucas, os figurinistas. A direção de cena, a orquestra, o coro, os maestros. Há muitas pessoas envolvidas. É preciso perceber como é importante a contribuição de todos. Esta produção, por exemplo, não é nova. Já a fizemos muitas vezes, já estivemos em muitos países diferentes com ela. Quando faço uma produção destas, tento perceber do que trata esta história. Porque a história da ópera não é necessariamente sobre o que a ópera trata. La Bohème é sobre a morte de uma rapariga que está doente, mas La Bohème é sobre a vida, não sobre a morte. É preciso tentar perceber e depois descobrir qual é a melhor forma, com os meios disponíveis e com todas as escolhas que temos de fazer, para dar vida a isso.
Mesmo quando já encenou uma ópera várias vezes, é preciso adaptá-la a novas salas, como aqui o CCB…
Sim. E devo dizer que esta sala é perfeita para esta produção. É um excelente palco para Jenufa. O processo de montar uma ópera implica fazer muitas escolhas. É preciso ter uma grande ideia. O mais importante, suponho, é a forma como se fiscaliza o que se põe em palco. Esta ópera é muito elementar. Há algo um pouco duro na peça. E queríamos realçar isso. Jenufa não se passa num ambiente sofisticado. É um ambiente de uma terra pequena. E há algo de muito… desconfortável. Toda a gente está a ver o que toda a gente está a fazer, a espiarem-se uns aos outros. Quisemos realçar isso nesta produção. Para além de trazer à tona o elementar - a terra, o ar, a água e todas estas coisas que fazem parte da história, com o bebé a afogar-se, por exemplo.
Disse numa entrevista qualquer coisa como “o público é como uma criança e uma história de embalar. Já conhecem a história, mas querem sempre ouvi-la uma e outra vez”. Com as óperas passa-se um pouco o mesmo?
A frase não era exatamente assim, mas sim. Muitas vezes, no repertório muito restrito que é a ópera, nós, enquanto encenadores, estamos a contar uma história que o público já conhece. E temos de encontrar uma forma de tornar essa história nova. Para mim, é muito importante que o público complete a história e não se limite a assistir passivamente. Não gosto de lhe apresentar uma coisa completa. Têm de entrar na história para que esta se torne parte da sua história, como se eles próprios a estivessem a contar.
Estamos habituados a ouvir óperas em italiano, em alemão, em francês, mas Jenufa é em checo. Esse é mais um desafio?
É um desafio sobretudo para os cantores porque é uma língua difícil de dominar. Assim, os cantores, para além de aprenderem a música, têm também de aprender esta língua, que muitos deles não falam. Depois de terem aprendido tudo isso, têm de a esquecer e de se exprimir através dela. Na verdade estamos bastante habituados a ouvir óperas em línguas que nem todos falamos. Quer se trate de italiano, alemão, francês ou inglês, nem toda a gente fala essas quatro línguas. Ou russo. Há muita ópera russa. Mas também há muita ópera checa. Com Janacek, claro, mas também Dvorak, Smetana, todos os outros grandes compositores checos. É importante que o espetáculo seja dirigido de forma a que, mesmo que não percebamos todas as palavras, consigamos compreender o que se está a passar.
O Robert estudou teatro e queria ser ator. O que o levou a mudar e seguir uma carreira de encenador?
Quando mudei, mudei para encenação. Não pensei que viria a ser encenador de ópera. Decidi experimentar a encenação porque um professor me disse: “És um bom ator, mas acho que és um encenador nato, quando vejo como reages e como te comportas”. Isto foi há muito tempo. Decidi dar uma oportunidade. Gosto de ópera. Tive a sorte de ir ver óperas com os meus pais, que também gostam de teatro. Tive contacto com tudo isso. Depois, acabei por trabalhar como assistente durante muitos anos.
Ainda no Canadá?
Não, em Inglaterra, quando eu já estava a viver em Inglaterra, na escola de teatro. Quando comecei a trabalhar como assistente, a ópera foi uma espécie de acidente. Alguém disse: “Conhecemos um encenador que está à procura de um assistente não remunerado. Nos meus primeiros trabalhos, não era pago. Estava lá apenas para ajudar. Mas aprendi muito.
E atuar? Às vezes tem saudades do palco?
Quando trabalho com os cantores, às vezes faço um pouco isso. Ajudo-os a encontrar certas reações e outras coisas. Mas não, não sinto falta, de todo.
E o que é que a ópera significa para si?
Todas as artes performativas são muito poderosas. A ópera combina-as todas. Por isso, penso que é potencialmente a mais poderosa, porque tem esta mistura de um conteúdo intelectual que é completamente transformado pela música. Mas também tem tudo o que faz sobressair o movimento, a arquitetura, a pintura, a coreografia, as artes visuais, o cinema e tudo o mais. Quando todos estes elementos se juntam, pode ser incrivelmente poderoso. Acho que é por isso que passei tanto tempo da minha vida a trabalhar nisto. Mas também adoro fazer teatro. O meu próximo projeto, que começo no dia 7 de abril, é dirigir a segunda das três tragédias de Édipo de Sófocles. Fiz Édipo Rei em 2022 no teatro grego de Siracusa, na Sicília. É um teatro grego muito famoso e enorme e todos os anos na primavera e no verão têm um festival de teatro clássico. Agora vamos fazer Édipo em Colono e no próximo ano vamos fazer Antígona. No ano passado estive no Festival de Salzburgo a dirigir Jedermann, a peça que ali fazem todos os anos desde 1920.
Da Grécia Antiga até à modernidade, a ópera permite viajar no tempo?
Essa é uma das coisas maravilhosas desta profissão: estamos constantemente a renovar a nossa própria psique e a viver vicariamente o que vai acontecer a todas estas pessoas.
E a dar isso ao público?
Espero que sim. É uma honra fazer isto. Estou sempre a lembrar à minha equipa que somos muito afortunados por podermos fazer isto.
Começou a ir ao teatro e à ópera muito jovem. Lembra-se da primeira ópera que viu?
Sim, lembro-me. Tinha cinco anos e foi Hansel e Gretel, de Humperdinck. Foi no verão, estávamos de férias, e foi apresentada numa espécie de celeiro muito perto da cidade. Foi em Cape Cod, no Massachusetts.
E qual é a sua ópera preferida?
Não tenho uma ópera favorita. Mas gosto muito da obra de Janacek. Acho que é realmente uma das minhas favoritas. Como compositor, seria ele. Mas tenho outras óperas de que gosto muito. Adoro Idomeneo de Mozart. Adoro Ifigénia de Gluck. Também gosto de Monteverdi. Adoro Handel. E gosto de fazer obras modernas.
Quando falamos de ópera, muitas pessoas ainda pensam em algo elitista…
Não acho que seja elitista. Muitas vezes as pessoas referem-se ao custo, porque os bilhetes são caros. Mas hoje em dia, quando vemos quanto custa ir a um jogo de futebol ou a um concerto de uma grande estrela - estamos a falar de muito mais do que custa ir ver uma ópera. Ver uma ópera compensa pelo que se investe nela. Por isso, saber um pouco sobre o que se vai procurar pode ter dividendos incríveis. É uma forma de arte fantástica para os nossos dias, em que um dos problemas é o facto de termos sido treinados para que tudo seja curto e rápido e a passar ao seguinte e ao seguinte. Por isso, há muitas coisas na nossa vida que podem gerar insatisfação. A ópera é um remédio fabuloso para nos dar satisfação na vida. É uma forma fantástica de lidar com o tempo e com as nossas emoções e de nos ajudar a compreender o que é ser humano. Acho que é disso que trata a arte. Penso que é por isso que as pessoas vão aos museus. Porque, de alguma forma, podemos sentir-nos confortados com o facto de todas as outras gerações, milhares de pessoas no passado, desde os gregos e os egípcios, terem passado pelo mesmo. Isso conforta-nos porque sabemos que, apesar de não gostarmos que a morte aconteça a outras pessoas, todos sabemos que estamos aqui apenas para uma curta visita e que vamos todos morrer. E ver as experiências de outras pessoas ajuda-nos e a ópera é realmente incrível para isso, além de ser extremamente estimulante para a nossa própria psique e imaginação, por isso toda a gente precisa de ir à ópera.
JENUFA, de Leos Janacek
CCB
Sexta 21 - 20h00
Domingo 23 - 17h00
Direção Musical: Jaroslav Kyzlink
Encenação: Robert Carsen
Orquestra Sinfónica Portuguesa
Coro do Teatro Nacional de São Carlos
Bilhetes: 36 a 65 euros