Se há filmes realmente “baseados em factos reais”, A Vizinha Perfeita (Netflix), de Geeta Gandbhir, é seguramente um deles. Assim, no verão de 2023, a pequena cidade de Ocala, no estado da Florida, foi abalada por um crime cujos ecos chegaram aos meios de comunicação nacionais dos EUA: Ajike Owens, uma mulher negra de 35 anos, foi morta, a tiro, por uma vizinha branca, Susan Lorincz, de 58 anos. A morte ocorreu na sequência de sucessivas queixas de Lorincz por causa das brincadeiras dos quatro filhos de Owens, com outras crianças do mesmo bairro, no relvado em volta de sua casa — a polícia de Marion County visitou o local várias vezes, tentando fazer ver a Lorincz que os seus protestos eram excessivos, mas no dia 2 de junho de 2023 não chegou a tempo. O caso foi julgado em agosto de 2024 no tribunal de Marion County, com Lorincz a ser considerada culpada de homicídio e condenada a 25 anos de prisão. De acordo com uma nota do juiz, citada no filme, Lorincz “agiu mais por raiva do que por medo”. No plano social e político, a morte de Owens reforçou a discussão sobre a legislação que, na Florida e mais alguns estados, permite o uso da força (nomeadamente através de armas de fogo) a quem se sentir ameaçado por alguma forma de violência. Dito isto, importa sublinhar o essencial — entenda-se: o essencial no plano cinematográfico. Não estamos perante um desses documentários televisivos em que uma voz off “descritiva” se apresenta como um discurso supostamente abençoado por uma razão universal que se sobrepõe à própria complexidade dos factos. A Vizinha Perfeita também não é uma variação sobre os programas dedicados a crimes verídicos (“real crime”), por vezes redundando em variações simplistas sobre matrizes de filmes policiais. Estreado no Festival de Sundance do passado mês de janeiro, onde ganhou o prémio de realização na secção de documentários, o filme de Gandbhir organiza as memórias daquilo que aconteceu através de uma inusitada matéria informativa. A saber: A Vizinha Perfeita (título original: The Perfect Neighbor) possui como elemento fundamental os registos de imagem e som feitos pelas câmaras que os polícias usam nos seus uniformes, ao nível do tronco (“bodycam”). Acedemos ainda ao interrogatório de Lorincz, na esquadra de Marion County, através das câmaras da própria polícia. A montagem de tudo isso acaba por funcionar como uma exposição didáctica dos mecanismos da lei e da ordem face ao labirinto da realidade, suas tensões e contradições. Por isso, este é também um filme sobre a necessidade de olhar para essa realidade para lá dos clichés morais ou ideológicos que contaminam a sua percepção. .'Os Novos Vizinhos'. A razão e as razões de André Téchiné.A redenção cinematográfica de Bruce Springsteen