A violência familiar como espinha dorsal de dois romances brasileiros premiados
À primeira vista nada une os dois romances de Victor Vidal e Stênio Gardel, a não ser que o primeiro foi o vencedor do Prémio Leya 2023 e o segundo do National Book Award [da tradução]. Só esses carimbos já justificavam a leitura de, respetivamente, Não Há Pássaros Aqui e A Palavra Que Resta. Mas, ao terminar-se a leitura das duas narrativas, encontram-se vários paralelismos inesperados e curiosos entre um e outro romance, além de confirmarem que o Brasil destes livros já pouco tem a ver com o passado recente da literatura brasileira e que os autores se libertaram dos temas recorrentes do século XX.
Os dois autores estiveram recentemente em Portugal para promover os romances e numa conversa simultânea confirmou-se que, além de serem estreantes nestas lides, é bastante real a perceção de terem mais em comum do que poderiam antever em obras escritas em situação muito diversa. Nada que em próximas obras não se altere devido às temáticas que interessam a cada um e aos seus próprios processos criativos.
Ambos leram os livros um do outro. Gardel concorda com a existência de alguns paralelismos: “Pode haver um diálogo entre os livros no que respeita à violência sofrida pelos protagonistas, mesmo que devido a razões e contextos diferentes, e também em traumas muito definidores da vida dos dois. No meu caso, há um preconceito dentro da própria família e isso influencia-o durante muito tempo. No livro de Vidal, a protagonista também sofre essas marcas e por muito tempo. A gestação é diferente, mas essa situação aproxima os dois livros.” Vidal também encontra essa aproximação: “Tanto num como no outro livro, os protagonistas refletem o peso da violência.”
Tanto Raimundo como Ana, os protagonistas de cada romance, sofrem muita violência devido às suas opções. Será que essa situação resulta da realidade nacional? Para Gardel, não é só o espelho do estado da sociedade: “É uma violência que está muito ligada à experiência de cada um, em muito devido a questões sexuais, e por isso está separada da estrutura social do Brasil. São traumas que podem correr em qualquer lugar do mundo”. Para Vidal, a sua história podia estar localizada fora do Brasil: “Mas, vindo de um lugar periférico e pobre do Rio de Janeiro, certamente que essa vivência ajudou a preencher a história. Há situações em que é possível pensar que tem a ver com a violência do país, mas os dois livros poderiam existir noutro lugar, mas aí os personagens seriam muito diferentes.”
São fruto de cenários nada parecidos: o campo e a cidade. Para Gardel ainda não existe uma consciência de que no futuro se manterá neste cenário: “Nsta história, só poderia colocar o protagonista neste ambiente e numa família arcaica, que carrega muitas tradições patriarcais, machistas, com um grande peso da religião nos comportamentos. Raimundo não é o filho heterossexual que os pais queriam, e essa realidade enquadrada numa comunidade rural concedia mais possibilidades do que numa cidade.” Já a história de Vidal é na cidade e dificilmente caberia noutro cenário: “Muitos dos elementos importantes da história resultam da vivência citadina; de crianças que perambulam por vários lugares da cidade e que se perdem nessas ruas. Poderia situá-la num cenário rural, mas o desenvolvimento da história seria muito diferente. Além de que gosto de explorar as particularidades da cidade, onde há muita gente mas a pessoa pode sentir-se muito sozinha. Esse é um aspeto fundamental para o que escrevi.”
Victor Vidal
D.Quixote
245 páginas
Só poderia ser este o primeiro livro? Vidal tem dificuldade em o dizer: “Não há como prever se fosse de outra maneira, até porque já tinha escrito outros romances. Muito do que nos acontece faz parte de um jogo de sorte e, por acaso, tudo culminou para ser este o primeiro. Portanto, pode-se dizer que só poderia ser Não Há Pássaros Aqui o primeiro a ser publicado. Se sempre escrevi coisas muito diferentes, no entanto é este que carrega muitos dos elementos que prefiro: a solidão, pessoas que vagueiam pela cidade, amizades formadas em lugares comuns.” Gardel regressa ao início da escrita de A Palavra Que Resta: “Essa era a história que me estava mais próxima e foi nela que apostei para publicar um primeiro romance. A escrita do livro permitiu revisitar às minhas experiências e medos, sendo que essa proximidade com o tema influenciou a escolha do tema.”
Ambos os livros refletem as vivências dos autores. Stênio Gardel viveu até à adolescência numa região rural: “Daí que tenha reproduzido parte da minha vivência e do meu processo de autoaceitação sexual como se encontra em Raimundo. Eu e ele dividimos esse passado rural e há episódios que vivi e utilizo na narrativa.” Mas não é apenas autobiográfico, garante: “Se tem aproximações em termos da elaboração do entendimento da homossexualidade, da compreensão da palavra e de a trabalhar, também tem diferenças pois não é uma autoficção. Distanciamo-nos um do outro, diferenciamo-nos em relação à resposta das famílias pois eu sempre fui aceite e ele não; as violências físicas não existiram comigo, foram criadas a partir do zero.”
Fugir à tristeza é outro traço comum dos protagonistas dos dois livros. Será que conseguirão ultrapassar este estado de espírito? Para Victor Vidal, o objetivo do seu livro era escrever sobre uma filha que procura dar sentido ao desaparecimento da mãe: “Que não é só um desaparecimento físico, mas também de uma busca por uma mãe que poderia ser amorosa e compreensiva. É, contudo, uma tentativa falhada porque parti do princípio de que Ana jamais seria capaz de recuperar essa situação porque é impossível dar sentido ao vazio e à ausência. Interessava-me a trajetória de uma protagonista que não encontrará uma redenção, que não vai em direção à luz. Apesar de o fim ser aberto a outras hipóteses, o livro não deixa o leitor acreditar que o caminho que ela percorre deixe de ser o mais negro.” Aliás, Não Há Pássaros Aqui tem em muito origem numa visita ao anexo secreto onde viveu Anne Frank, onde Victor Vidal viveu uma experiência de grande impacto: “Tentei imaginar o que foi viver dois anos naquele espaço claustrofóbico, com uma pequena vista para um bocado do céu. Quando voltei, aquela situação levou-me a pensar nas emoções que senti e aquelas imagens do lugar onde ela esteve perseguiam-me, tal como as da minha infância, e esses elementos uniram-se e deram origem a esta história.”
Stênio Gardel
D.Quixote
174 páginas
Para Stênio Gardel, o seu protagonista Raimundo sofre do mesmo sentimento e também não se vislumbra no romance o fim de uma tristeza que o acompanhará durante décadas: “Se houve alguma superação da tristeza, ela existe no facto de o protagonista ter decidido o que fazer com uma carta que lhe fora entregue muitos anos antes, porque entretanto aprendera a ler. Aí dá-se uma inversão da sua relação com a carta, pois passou a ter o poder da escolha entre a ler ou não. É a partir desse momento que a história do protagonista pode ser fechada. Não sendo uma superação plena, o resultado da sua decisão faz com que o mal que a carta poderá significar esteja nas suas mãos.”
Há outra questão comum nos dois livros. Em Não Há Pássaros Aqui a personagem da mãe é má e em A Palavra Que Resta também o é. Porque surge esse retrato de uma má mãe? Para Vidal esse é um propósito que vem desde o início da escrita: “Queria explorar o de onde vem e como se desenvolve uma separação entre pais e filhos. Essa mãe é terrível, mas cria uma certa compaixão porque o que a separa da filha deve-se a uma relação anterior muito conflituosa. Esse meu sentimento para com a personagem fez-me procurar a razão de se ter a imagem de os pais serem perfeitos e gostarem dos filhos, mas, sendo seres humanos, podem não gostar de quem trouxeram ao mundo. Aliás, essa era a impressão que eu tinha da minha mãe, que não gostava da pessoa que eu era, e o livro ajudou-me a tentar entender de onde vêm essas divergências.” No livro de Stênio Gardel é o pai o rosto mais visível da violência, no entanto é também a mãe quem comete um ato muito cruel para com o filho: “Como o protagonista Raimundo diz, suporta a violência física do pai, acha até que são as vergastadas que em muito o formam, mas não aguenta as palavras da mãe no momento da despedida. Há um amor pelo filho muito enviesado por não o aceitarem como era o seu jeito.”
O facto de ambos os romances terem sido premiados é outra semelhança. Não Há Pássaros Aqui venceu a edição de 2023 do Prémio Leya, o que para Victor Vidal é muito importante: “Foi fundamental para o livro e extremamente importante para mim. Como autor, sempre fui muito inseguro e pouco confiante no que escrevia, portanto senti o prémio como uma enorme validação. Para o livro, sem ganhar este prémio, ele não existiria. Demorei dois anos a fazê-lo e já estava há um ano guardado, daí que sem o Leya poderia estar por publicar. Não escrevi para concorrer, até porque estava desgostoso com o meio literário brasileiro, que dá poucas oportunidades. Basicamente, tinha-o escrito para mim em sem outras ambições, durante os dois anos da pandemia. Era também uma maneira de fugir à pressão da escrita da tese de doutoramento nessa época.”
Para Stênio, o Prémio National Book Award da melhor tradução foi também uma grande oportunidade após ter sido finalista nos prémios Jabuti e São Paulo de Literatura e nomeado para o de Dublin: “O livro já saíra em 2021 e estava a caminhar bem entre os leitores, mas é o National Book que lhe dá uma outra visibilidade por ser uma chancela muito importante. Contudo, a minha legitimação enquanto autor ocorreu ainda antes, com a proposta da editora Companhia das Letras, e essa publicação deu-me outra segurança. O prémio da tradução foi um acréscimo à trajetória do romance e gerou outras traduções.”
O não serem traduzidos na edição portuguesa e usada a língua do Brasil não é um problema para os dois autores. Vidal lê a literatura portuguesa e entende o que se escreve: “Afinal, partilhamos a mesma língua. Pode dar um pouco mais de trabalho, mas também nos livros de autores brasileiros muitas vezes tenho de pesquisar o significado de cartas palavras.” Gardel concorda com o colega: “No meu livro existe um discurso muito próximo da oralidade, o que faz com que algumas expressões possam provocar alguma estranheza, mas para evitar isso foram incluídas algumas notas e será útil na leitura. Mesmo que não tivesse essa ajuda, poderia ler-se bem. Dou um exemplo, leio Saramago e compreendo as características da língua que ele usa.”
Outras novidades literárias
HISTÓRIA DE VIDA
Depois de publicar a peça de teatro Batalha [2023], Sandro William Junqueira regressa ao romance com Emídio e Ermelinda. A partir de memórias próprias e de conversas com a avó, passa a escrito a vida de um homem incorrigível – os que dão o título ao livro –, a quem dizem ter saído. Acrescenta outras histórias, refazendo um país que já não existe e pessoas que também desapareceram; tem muito de ficção, mas mais de real.
Sandro William Junqueira
Editorial Caminho
151 páginas
HISTÓRIAS DE VIDAS
São dez contos que se seguem ao romance Um Dia Lusíada [2022], um dos quais premiado: País Real, Um Regresso, que fala de um regresso, o de Camões, bem como de um País Real, o de Armando. Em confronto estão o poeta maior e um sapateiro de boa memória. Antes, oito contos, e outro a rematar, com lembranças, acusações e interpretações para o leitor que não aceita apenas uma versão dos factos.
António Carlos Cortez
Editorial Caminho
270 páginas
UMA VIDA COM HISTÓRIA
Após a ficção romanceada sobre Annie Silva Pais [2022], Ana Cristina Silva volta ao retrato literário com o mítico protagonista Marquês de Pombal. Não é figura fácil, mas a autora faz o seu trabalho e refaz uma vida que se confunde com a história do nosso país. No último parágrafo, no leito da morte, escreve que o marquês ainda “acredita que há um futuro para si”; este livro é prova da sua eternidade.
Ana Cristina Silva
Bertrand
358 páginas