A vida a preto e branco

Com interpretações de Tessa Thompson e Ruth Negga, <em>Identidade </em>é a crónica de uma mulher negra que se fez passar por branca. Digna estreia de Rebecca Hall na realização, a chegar à Netflix na próxima quarta-feira.
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Nos dias que correm, filmar a preto e branco é uma escolha que deve ir além do propósito estético, caso contrário corre-se o risco de oferecer apenas um elegante papel de embrulho. Rebecca Hall, na cadeira de realizadora, e o seu diretor de fotografia, Eduard Grau, parecem estar claramente cientes disso. Identidade é um filme muito bonito e parte dessa beleza coincide com o facto de ter sido filmado a preto e branco. Mas há uma qualidade dramática que está acima de tudo: a questão racial subjacente à cor de pele das atrizes Tessa Thompson e Ruth Negga assume aqui a ambiguidade necessária para se contar a história de uma mulher negra que, na Nova Iorque dos anos 1920, conseguiu transformar a sua imagem ao ponto de ser vista pela sociedade como uma mulher branca. Alguém que, para alcançar a farsa perfeita, ainda rematou o jogo de aparências casando-se com um homem branco, rico e racista até à medula.

Baseado no romance homónimo de Nella Larsen, uma publicação de 1929, Passing (trunfo da Netflix para a temporada de prémios, que chega à plataforma no dia 10) é um filme de um minimalismo e uma contenção pouco comuns. Logo na primeira sequência, acompanhamos Irene (Thompson) num dia de intenso calor em que ela, por momentos, e dentro do espírito citadino, se deixa levar pela possibilidade de fazer passar despercebida a sua cor de pele - a tez relativamente clara para os padrões racistas, disfarçada com um chapéu de aba translúcida e um vestuário de bom gosto, é quanto basta para se camuflar no espaço de um restaurante chique. A câmara de Hall capta lindamente a insegurança da sua postura e faz um compasso de espera até que surja no ângulo de visão a única pessoa capaz de a apanhar em falso: Clare (Negga), uma amiga de infância que se tornou ela própria a rainha da ilusão, com uma cabeleira loira e sobrancelhas pintadas... É a tal.

O encontro entre as duas dará lugar a várias visitas posteriores de Clare, que vai ganhando terreno na vida de Irene, sem que as suas intenções sejam claras. E nessa estranheza controlada, que se adensa à medida de uma obsessão mútua, está o traço mais feliz desta primeira obra de Rebecca Hall. Com um formato quadrado 4:3, que torna a evocação visual da época ainda mais apelativa, Identidade cresce em suaves andamentos, entre ecos trágicos (notícias de linchamentos de negros) e uma zona de tensão feminina que toca notas desconhecidas.

Na verdade, a zona de tensão é o cinzento do filme, o modo como a identidade racial se dilui numa espécie de sonho, sem deixar de nos atormentar. Clare/Negga parece ser mesmo uma figura vaporosa que se infiltra na imaginação de Irene/Thompson como objeto de inveja, ainda que não deixe de ser merecedora da sua proteção. Nada é a preto e branco, embora uma das duas cores se imponha. "I"m someone else. I"m white, white, white!", já dizia Sarah Jane, a filha de uma afro-americana, em Imitação da Vida (1959), de Douglas Sirk. Filmar a dor de um corpo na sociedade é uma tarefa difícil, e Hall provou estar à altura, com delicadeza interior e exterior.

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