Em 2010, o filme A Rede Social expôs o negócio por trás da dança dos algoritmos.
Em 2010, o filme A Rede Social expôs o negócio por trás da dança dos algoritmos.

'A Verdade sobre o Facebook'. Os algoritmos são feitos por pessoas

Frances Haugen passou da condição de empregada do Facebook para o estatuto de delatora das contradições e mentiras da empresa de Mark Zuckerberg. O seu livro 'A Verdade sobre o Facebook' é um trabalho exemplar de investigação, com uma forte componente confessional.
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A publicação de um livro como A Verdade sobre o Facebook, de Frances Haugen (ed. Casa das Letras, tradução de Sofia Barrocas) vem lembrar-nos que a plataforma criada por Mark Zuckerberg está longe de ser um elemento transparente e pacífico nas nossas existências. O subtítulo da edição portuguesa — “Porque me tornei delatora e quis contar toda a verdade” — aí está para nos recordar que não faz sentido encarar o Facebook como um paraíso de comunicação e um arauto do humanismo. Para utilizarmos uma fórmula consagrada, importa perguntar de que falamos quando falamos do Facebook.

No seu site [franceshaugen.com], a autora apresenta-se como uma “defensora da responsabilização e da transparência nas redes sociais”. De tal modo que isso a levou a protagonizar um processo de divulgação de dezenas de milhares de páginas, antes do mais no Wall Street Journal, expondo aquilo que a empresa em que trabalhava (o Facebook, precisamente, agora Meta) não queria que chegasse, não apenas ao conhecimento, mas também à consciência colectiva do público: “Se escondemos ou retemos intencionalmente às pessoas informação que poderia alterar as decisões que tomaram, estamos a exercer o nosso poder sobre elas. Trata-se de manipulação. Foi isto, precisamente, que vi o Facebook fazer repetidamente. Não apenas reter informação mas negar ativamente a verdade quando as pessoas levantam dúvidas.”

EUA & Europa

Não seria simples, nem especialmente útil, tratar o livro de Frances Haugen como um mero relatório sobre os poderes dos algoritmos e, sobretudo, a aplicação específica desses poderes em estratégias de desinformação e manipulação dos cidadãos. Claro que o livro é sobre isso, mas é-o de uma maneira que está longe de se confundir com o esquematismo de um banal panfleto — os algoritmos não nascem de um destino fatal, quer dizer, são feitos por pessoas. 

Em primeiro lugar, a autora propõe-se revisitar com infinitos detalhes a sua memória de empregada do Facebook e, mais tarde, as sessões enquanto delatora (“whistleblower”, para usarmos a palavra inglesa que se internacionalizou), não apenas nos meios de comunicação, mas também em comissões do Senado dos EUA e na Europa, no Parlamento do Reino Unido e no Parlamento Europeu. Depois, fá-lo através de uma escrita que nunca enjeita uma forte componente confessional, seja evocando os seus problemas de saúde, seja dando conta de algumas relações privadas importantes na sua decisão de delação.

A Verdade sobre o Facebook é um livro com mais de 400 páginas, mas atrevo-me a sugerir que a sua “mensagem” - e, sobretudo, a sua inequívoca importância ética e política - está condensada numa breve frase escrita logo no capítulo de abertura: “Em última análise, o Facebook configurou uma cultura que não valoriza a responsabilidade individual.”

Em tudo isto deparamos com uma significativa componente europeia. Frances Haugen é especialmente incisiva no modo como destaca a atenção das autoridades do Velho Continente aos problemas, não apenas tecnológicos, mas sobretudo sociais e políticos suscitados pelas formas menos transparentes de desenvolvimento do Facebook: “Os europeus perceberam que parte da razão pela qual o Facebook ficou tão fora de controlo teve que ver com o facto de nunca ter sido sujeito a supervisão.” Não esquecendo que na origem de tal situação encontramos sempre as componentes económicas: “A empresa sabia que, se tivéssemos a nossa própria régua de medição, podíamos querer que a plataforma melhorasse de maneiras passíveis de ser medidas — maneiras que a obrigariam a investir em medidas de segurança, o que implicaria diminuir os lucros.”

Uma falsa escolha

Em boa verdade, tudo isto está dito, ou melhor, filmado numa das obras-primas do cinema do século XXI: A Rede Social (2010), de David Fincher, cujo argumento, assinado por Aaron Sorkin (“oscarizado” pelo seu trabalho), se baseia num dos primeiros livros - Milionários Acidentais, de Ben Mezrich (ed. Lua de Papel, 2010) - a analisar o nascimento do Facebook.

O filme de Fincher é tanto mais esclarecedor em relação ao projeto de negócio inerente à gestação do Facebook quanto nos permite perceber que um dos factores ideológicos fulcrais nessa gestação foi a promoção de uma noção “libertária”, profundamente pueril, da comunicação sancionada pelas novas tecnologias.

Essa ideia, politicamente perversa, promove (e continua a promover) a ideia segundo a qual tentar ordenar os mecanismos e dispositivos de comunicação é, necessariamente, “censurar” - ideia que, aliás, todos os dias contamina um certo imaginário “juvenil”, quer através de algumas formas televisivas, quer em muitas mensagens publicitárias. Também nesse aspeto, Frances Haugen é de uma precisão cristalina: “A principal vitória de relações públicas do Facebook na década passada foi enganar-nos para nos levar a acreditar numa falsa escolha forçada entre ‘liberdade’ e ‘segurança’, que teríamos de optar por preservar ‘a liberdade de expressão’ em detrimento da ‘censura’.”

Aliás, também neste aspeto, a autora está longe de alimentar qualquer maniqueísmo “vingativo”. Reconhece mesmo, com evidente amargura, que a saga do Facebook não pode ser resumida como o triunfo de um caricato império do mal. O que está em jogo é diferente: a consciência dos limites de qualquer idealização da comunicação (e do seu aparato tecnológico) está presente, desde muito cedo, na história da empresa de Mark Zuckerberg. Frances Haugen remata a sua desmontagem da oposição simplista entre “liberdade” e “censura” com uma memória exemplar: “O Facebook convenceu-nos que essas eram as duas únicas opções, quando, de facto, a empresa tem milhares de páginas a documentar um mundo de alternativas.”

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