A série que descreveu a era Trump em tempo real
No genérico de abertura há telefones de secretária, computadores portáteis, jarras com flores, sapatos altos, granadas e outros objetos a explodir em câmara lenta, uns a seguir aos outros, ao som de música orquestral. A partir da segunda temporada, juntam-se a esta elegante sequência de detonações ecrãs de TV, onde aparecem Vladimir Putin à pesca ou Donald Trump a discursar. E por aí adiante... Ao longo de seis temporadas, vamos ouvindo variações de “são tempos sombrios e estranhos”, “o mundo enlouqueceu” ou – um dos desabafos mais citáveis – “a única forma de continuar sã é focar-me no meu cantinho. Se tornar o meu cantinho do mundo são, não deixo a insanidade vencer”. O ano em que a loucura começa é 2017, e no derradeiro episódio da última temporada, em 2022, aparece Trump nas notícias, de boné vermelho, a anunciar a recandidatura à Casa Branca, ainda esta não tinha acontecido. Pois bem: a ficção tornou-se realidade poucos dias depois da emissão do dito episódio.
Assim é The Good Fight, a série que mediu a pulsação à era Trump como nenhuma outra, e que importa (re)descobrir perante a hipótese do regresso ao poder do ex-presidente dos Estados Unidos – hipótese hoje reforçada, ou não, pelas primárias republicanas na Carolina do Sul, o estado natal da candidata Nikki Haley, que, apesar disso, enfrenta ventos desfavoráveis, com Trump a liderar as sondagens e a manter o apoio do establishment do partido, para além da popularidade entre a base conservadora. Talvez neste momento os argumentistas Michelle e Robert King já estejam a tirar notas para uma futura temporada... Mas como é que não demos antes com esta série?
A razão é simples: The Good Fight não teve estreia em nenhuma plataforma de streaming em Portugal. Só com a chegada da SkyShowtime, no último ano, é que passou a estar disponível por cá, integrando discretamente o catálogo deste serviço. E uma coisa é certa: vê-la agora causa uma espécie de tremor. É como carregar num invisível botão de rewind. Sentimos pequenos arrepios, episódio a episódio, pelo testemunho que constitui de um tempo recente só passível de se revisitar através do drama atípico.
A arte do zeitgeist
A série protagonizada pela grande senhora Christine Baranski é, pois, esse drama atípico. Tratando-se de um spin-off de The Good Wife (2009-2016), onde a atriz já interpretava Diane Lockhart, a mentora da advogada principal, The Good Fight coloca-a na linha da frente como corpo sensível à atmosfera tóxica de uma América que acaba de eleger o presidente Donald Trump, provocando um abalo interior nas mulheres iludidas com a convicção da vitória de Hillary Clinton. Aliás, pode dizer-se que a primeiríssima imagem de The Good Fight – Lockhart/Baranski de boca aberta a olhar para a televisão – espelha aquele que terá sido o espanto dos próprios criadores, uma vez que a proposta original feita à atriz era uma série sobre a sua personagem feminina e madura a desabrochar num contexto em que via refletidos os seus valores. Ora a vitória de Trump motivou a reescrita total desta premissa.
Sendo um spin-off, The Good Fight rapidamente seguiu um caminho muito mais político, sombrio, divertido (por vezes, esdrúxulo) e autónomo em relação à série antecessora. Aqui, a advogada Diane Lockhart, convencida de que vai finalmente poder desfrutar da reforma, vê-se desfalcada por um esquema Ponzi e de regresso ao trabalho – isto é, na esperança de se poder manter na advocacia com um lugar digno em Chicago. É então que um escritório de advogados afro-americano a recebe, e onde surge como a única sócia branca. Alguém que vai reter na pele todas as tensões de um dia a dia avassalador, esse que a familiariza com o cansaço extremo de não saber como ajustar a mente à realidade trumpista, na profusão desconcertante dos seus termos. Das fake news ao assédio, dos tweets ao inenarrável Serviço de Imigração, dos NDA (acordos de confidencialidade) à cultura do cancelamento, são muitos os sintomas de um mundo insano que interferem com a postura clássica desta mulher. Como aguentar a histeria do cenário imposto? A receita parece ser uma boa gargalhada... sob efeito de alucinogénios. Isto antes de recorrer às artes marciais, lançamento do machado e ações feministas mais arriscadas.
Baranski faz de Diane Lockhart uma personagem deliciosa, cativante, sem precisar de nenhum exagero de traços. Mas se este universo com vibração de manchete funciona às mil maravilhas, dentro de uma estranha mistura de registos – que inclui animação e musical, e vai ficando cada vez mais estranha, à medida do absurdo dos tempos –, é porque todo o elenco tem uma energia distinta. Desde logo, o sócio interpretado por Delroy Lindo, a incrivelmente espevitada assistente de Lockhart, Marissa (Sarah Steele), e a sócia que aparece na segunda temporada, Liz Reddick, por Audra McDonald, tornando-se a parceira desafiadora e sagaz da protagonista até ao fim.
Apesar de ser uma série de advogados, The Good Fight não se prende a nenhuma dimensão estática do tribunal. A sua liberdade jazzística não o permite: ao mesmo tempo que usa da sátira e do ridículo, não subestima uma boa dose de sobriedade, e na hora de deslizar para a tragédia, não perde de vista a ordem própria do surreal. De resto, a “boa luta” do título também não se contenta com uma dinâmica limpa e explicações de bolso para os fenómenos que definiram uma certa administração americana. O seu zeitgeist é brilhante e perturbador. A sua crónica da realidade, incisiva e imbatível.
Ao longo das suas seis temporadas, a imprensa americana identificou-a como “a mais completa” produção televisiva da era Trump. Uma evidência a que somos expostos, em jeito de radiação solar, desde o primeiro episódio.