A sensação de espaço e movimento

O filme-sensação em França por estes dias é este Filhos de Ramsès, curioso novo esforço de Clément Gogitore, cineasta descoberto no LEFFEST, a partir de agora nas salas portuguesas. Gratificante encontrar um filme francês sem a décalage desnecessária. Em Cannes, teve boa receção na Semana da Crítica.

Filmar com tranquilidade um gesto de raiva. É isso que parece flagrante neste cinema de Clément Cogitore, cineasta que se tinha espalhado ao comprido no inédito Ni Li Ciel Ni La Terre (2015) e conhecido pelo seu trabalho como artista plástico. Aqui mostra um poder hipnótico novo: cruza temas e ambiciona uma sensação de abismo místico num conto social que mistura escroques e sobrenatural. Ao mesmo tempo, é um filme que não renega o seu olhar social, mesmo quando nunca está ao serviço de uma mensagem ativista ou coisa que o valha. Trata-se, antes sim, de um pensamento pejado de uma pluralidade que finta até os géneros, do melodrama ao clássico thriller.

O Ramsès do título é um charlatão que se diz vidente. Vive no multicultural bairro parisiense de La Goutte d"or. Depois de testemunhar um gangue de jovens conflituosos a aterrorizar os habitantes locais, vê o equilíbrio do seu próspero negócio a ser colocado em causa e decide intervir. Descobre uma estranha conexão com essas crianças violentas que o vêem como um feiticeiro, mas a sua vida muda quando uma delas desaparece. A partir daí tem dificuldade em conseguir gerir o seu negócio de mentir às pessoas sobre os seus entes queridos perdidos. A própria equipa que o ajuda a montar o espetáculo de médium parece desintegrar-se. Aos poucos, parece surgir nele um pingo de humanismo e as suas origens árabes vêm ao de cima numa cidade fria onde os emigrantes são como corpos invisíveis.

Ao seguirmos Ramsès, muitas vezes com o uso de uma câmara oscilante e solta, vamos conhecendo os cantos ao bairro. É um pedaço de uma Paris com muitos africanos, clandestinos, árabes e asiáticos. Ruas com uma humidade escura, becos degradados e muitos escombros. A La Goutte d"Or tem gente autêntica e que é um exemplo de um tecido social destes dias no qual não se vêem esplanadas nem turistas. Acima de tudo, uma cidade triste e onde há uma marginalidade que provém da infância e em que não parecem haver escolhas.

Um docudrama com suspense

Se é verdade que nesta altura já não é novidade o uso de uma força documental na ficção, esse elemento realista nesta história é integrado com uma textura carregada. Quase como se a paisagem das ruas fosse elemento integrante da narrativa. São muitos os planos em que o corpo do protagonista Karim Leklou parece literalmente parte daquela população e faz sentido a câmara estar frequentemente sob as suas costas. Um real duríssimo que não decora os procedimentos dramáticos, faz parte dele. É essa respiração ofegante que impressiona no projeto. Um realismo brusco que não destoa quando surge uma hipótese de irreal. O "feiticeiro" em questão vai em busca de salvação, de redenção mas ao mesmo tempo está apenas também a fazer pela vida, a sobreviver...Uma complexidade que se torna saborosamente esgotante e este é um daqueles filmes que pede para respirarmos ofegantemente com o movimento incessante da personagem. Em contraste, nas sequências do espetáculo do cambalacho de médium, tudo sossega. Há uma quietude que corta ainda mais a respiração. Cogitore tem um truque hipnótico que prende, que faz parar tudo. A mentira e o engano humano pedem isso...

O corpo de um ator

Para que todo este programa de Cogitore resulte é preciso saber entrar neste círculo de movimento. Dir-se-ia que é uma ebulição que é coreografada com um ritmo que provavelmente é mais performativo do que cinematográfico. Uma proposta de repensar a própria cadência do plano-sequência. Certo que essa exploração filosófica em torno da conquista de espaço e som só é almejada porque Karim Leklou é um ator cujo corpo é só por si uma fonte de possibilidades. Um ator com uma expressão corporal que tem um magnetismo total. E depois há aquele olhar: ora perdido numa culpa interior, ora atormentado por um último laivo de bondade. Já desde O Mundo é Teu, de Romain Gravas, que era evidente estarmos perante um talento diferente do novo cinema francês. Leklou não é apenas um ladrão de cenas, é alguém que faz centrar tudo em sua órbita. Mesmo num filme coral como o magnífico Marselha Debaixo de Fogo, de Cédric Jimenez, já era assim. Desengane-se quem acredite estar aqui o novo Vincent Cassell - Karim Leklou não é uma versão de ninguém, é somente ele próprio, um talento de carisma verdadeiro.

Com uma dimensão espiritual inesperada, Goutte d"Or tem enigmas que não precisam de explicação. Este é um cineasta que não quer explicar ou justificar tudo, sobretudo a visão verdadeira deste "feiticeiro" solitário. Nesse sentido, é um filme aberto ao invisível, àquilo que o cinema não precisa de contextualizar. Será esta a paradoxal verdade e mentira do cinema mais puro? Talvez, talvez seja apenas um arroubo crítico entusiasmado mas no enigma está o ganho. A prova de angústia de Filhos de Ramsès é só essa. E se o filme não é a obra-prima que poderia ser é porque ali há coisas a precisarem de um outro tipo de axioma. Se calhar, no próximo projeto tiremos as teimas sobre o valor real deste artista no cinema....

dnot@dn.pt

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