A segunda vida de Fernando Pessoa: Nabokov, Somerset & Aleister Crowley

E se Fernando Pessoa regressasse ao presente sob o heterónimo Vicente Guedes, aquele que foi preterido como autor do Livro do Desassossego para Bernardo Soares? Um romance inédito de João Céu e Silva que o DN está a publicar em 12 capítulos.

75 anos após a morte de Fernando Pessoa aparece um homem em tudo igual ao poeta na esplanada do Martinho da Arcada. Chama-se agora Vicente Guedes, um dos heterónimos do poeta, quer voltar a viver na sua antiga morada, onde agora está a Casa Fernando Pessoa, e assume-se como o seu herdeiro literário. Alguém o está a ensinar a ser Pessoa, recuperando os ensinamentos do poeta W.B. Yeats, de Ian Fleming e de Somerset Maugham, e de como o mago Aleister Crowley os inspirou e enganou.

Como nasce o romance O Mágico de Somerset Maugham?

Oliver Haddo foi um nome que me provocou imediata curiosidade. Principalmente, devido ao facto de a Besta ser inspiração para dois escritores que viviam separados pelo Oceano Atlântico e cuja literatura era de estilos tão opostos como as suas personalidades. Mesmo assim, com tanto mar a afastar Fleming e Maugham, a Besta ligara-os. Era, realmente, uma personalidade satânica esta!

Reencontrei Sena ao jantar dois dias após nos termos apeado da sua carruagem particular do comboio. Úrsula ficara na estação principal e dela, creio, não vou ouvir falar mais. O meu anfitrião estava bem-disposto e serviu-me ele próprio de uma travessa onde jaziam quatro pequenas perdizes estufadas enquanto comunicava que iria dar-me uma semana inteira de folga. A razão era simples, precisava de fazer umas pequenas investigações antes de voltar a ditar. Não foi coisa que me preocupasse, principalmente após a jovem ter voltado a preencher o vazio que ficara na casa a seguir ao desaparecimento de Sena e daquela funcionária irritante. Desconheço o destino de ambos, nem o soube pela reservada jovem que me cabia em companhia cada vez que se ausentavam. Ficou o silêncio no grande palacete de Sena e um corpo magnífico para eu desfrutar enquanto iria ler O Mágico e apanhar sol no gazebo do jardim.

A jovem mantinha-se em silêncio e raramente respondia às minhas perguntas ou dialogava. Não é que isso me incomodasse muito, visto que estava bem no papel para que foi contratada e mantínhamos uma relação perfeita. Mesmo assim eu insistia para que falasse e, no primeiro dia em que voltámos a ficar sós, obriguei-a a sentar-se à mesa para conversar comigo. Fomos trocando palavras mas era como se me ignorasse com o seu silêncio, mesmo que ao fim de alguns dias lhe notasse vontade de falar. Alguma coisa a calava por certo e até cheguei a perguntar-lhe se havia razão sem que tivesse obtido qualquer informação. Não fiquei muito preocupado com o facto, porque já estava acostumado a esta forma de ser e ao seu comportamento pouco comunicativo. Nada que numa das manhãs seguintes não tivesse mudado, permitindo-me ouvir mais do que aquelas palavras que pronunciava, também, em quase silêncio enquanto fazíamos amor.

Estávamos ambos a ler no jardim. Eu, O Mágico do Somerset, sentado à sombra do telhado do gazebo. Ela, um livro encapado que não me permitia decifrar o título ou o autor, deitada sobre a relva. Enquanto eu me distraía a olhar para mancha branca do seu vestido a contrastar com o verde do jardim, ela parecia concentrada na leitura. Folheava página a página demoradamente, apreendendo bem o que nelas estava escrito. A jovem distraía-me da minha leitura com o seu corpo espalhado pela relva de forma harmoniosa e pouco discreta. De vez em quando dobrava uma das pernas e levantava o pé no ar; depois, voltava-se de barriga para cima e dobrava os joelhos ou, então, encolhia-se toda como se fosse um feto no ventre da mãe. Não é que estivesse inquieta, porque esta diversidade de posições iam acontecendo ao longo do dia e permanecendo em cada uma por um bom par de horas.

Certo é que o livro que estava a ler a entusiasmava bastante mais do que o meu a mim. O tal Haddo de pouco me interessava, era um livro que escolhera por obrigação, enquanto o dela - parecia-me - entranhava-se no próprio corpo. Tentei adivinhar qual seria o livro, mas não consegui que as suas posições físicas denunciassem a intriga ou as personagens. Ainda esperei que se levantasse para ir buscar alguma coisa, deixando o livro por ali, mas isso nunca aconteceu. O livro encapado andava sempre entre as suas mãos, como se fosse um bem precioso ou tivesse vergonha do que lia. Quando o sol se punha guardava-o em lugar a que eu não tinha acesso, para só o voltar a mostrar à hora de novo banho de sol.

Reparei que não a afetava estar sob a camada de raios solares que cobria quase todo o seu corpo durante a maior parte do dia. Ora de perna dobrada para cima ora para baixo e sempre por perto do gazebo aonde eu me protegia. Reparei que o seu corpo ia ficando bronzeado quando uma ou outra alça caía do ombro e deixava ver a pele mais clara. Perguntei-lhe se não ia pôr creme protetor, ao que respondeu que o sol ainda estava muito fraco e que não havia perigo.

O sol, no entanto, não estava assim tão fraco, mas só ao terceiro ou quarto dia, quando as nuvens desapareceram, é que a jovem decidiu proteger-se com uma camada de creme. Parecia uma ginasta a contorcer-se para cobrir todo o corpo quando reparei no que fazia. Imediatamente a substituí no ato e esfreguei as minhas mãos por todo o seu corpo numa demorada espécie de massagem. Comecei pelos ombros, desci pelas costas, ancas e até à ponta dos pés. Aí, imitei-a. Espetei-lhe o pé para cima e espalhei o creme na metade da perna aonde não tinha chegado. Demorei-me algum tempo na planta dos pés, numa outra espécie de massagem; fiz o mesmo nos braços e só então virei o seu corpo para besuntar de creme a parte da frente do corpo, tendo demorado um pouco mais do que o necessário junto ao peito. Baixei-lhe as alças e apliquei com todo o empenho a proteção nessa parte dos ombros que ficara por cobrir e, em seguida, destapei um pouco mais de pele para deixar protegida com creme essa sua bonita parte do corpo.

Quando dei por acabada a tarefa, ela voltou-se de barriga para baixo e entregou-se de novo à leitura, com a perna direita levantada no ar. Tentei outra vez ver que livro seria o que estava a ler mas, sem querer ou querendo, a leitora não permitia que eu identificasse o título. Já o tentara decifrar enquanto passara o creme, tropeçando docemente com um dos pés no volume para que ele se abrisse, mas fora uma tentativa falhada. Achei que não haveria problema em perguntar qual seria a sua escolha, mas o facto de estar encapado fez-me pensar que seria de propósito e, portanto, não o fiz. E ela, mantendo o silêncio que lhe era habitual, também nada disse. Talvez nem soubesse que estava curioso sobre o título do livro que lia!

A ignorância sobre o título começou, contudo, a enervar-me. Principalmente porque me parecia que a jovem transparecia maneiras que me sugeriam que absorvia algum do seu conteúdo. Por isso, perdi a vergonha e perguntei-lhe qual era o livro que estava a ler.

- Um romance de Vladimir Nabokov.

Não disse mais nada. Designadamente o que me interessava: o título. Solucionara parte do problema mas, confesso, que essa revelação ainda aguçava mais a minha curiosidade. Poderia - e deveria - ter insistido e perguntado qual era o título. Não o fiz, creio que estava a armadilhar uma situação que não teria nada de especial. O problema existia apenas na minha cabeça, decerto, e bastaria fazer nova pergunta para saber qual era o livro do russo que gostava de caçar borboletas. Sem conseguir concentrar-me no que estava a ler, passei o resto do dia a tentar adivinhar que livro seria? Ao fim de algum tempo decidi-me pelo sedutor Lolita. Só poderia ser esse face aos sinais que o seu corpo dava, iguais aos que a adolescente do romance fazia.

Ia tentando esclarecer ao observar milimetricamente todos os seus gestos. Se ficava com um ar sério, eu pensava que o senhor Humbert tinha sido apanhado pela mãe da menina a espreitá-la com demasiada atenção! Se sorria, eu achava que ele já conseguira retirá-la do campo de férias e que a levara para o hotel! Se dobrava a perna esquerda, eu considerava que era a parte onde ambos fugiam! Se se virava de costas, eu acreditava que se estava num momento de briga! Punha-se de costas para baixo e eu imaginava que chegara à parte em que Humbert descobria que não era o seu primeiro homem! Se contraía as pernas com força, imaginava que lia a passagem em que a adolescente lhe envia uma carta a pedir dinheiro!...

Ao fim da tarde, após a série de tentativas para identificar que livro seria aquele através das suas reações físicas, dei comigo a imaginar que a jovem estava a ler este livro encapado porque viveria a mesma situação: Sena seria Humbert; a funcionária, a mãe e ela Lolita. A suspeita afetou-me profundamente durante o resto do dia, enquanto continuava a contorcer-se para ler não sei qual Nabokov. Ao deitar-me na mesma cama onde a jovem esperava por mim - eu ficara na sala a ler o livro sobre Oliver Haddo com a sofreguidão possível -, achei que esta minha inquietação seria um disparate. A jovem estava comigo; só, ninguém a pressionava; podia falar à vontade e pedir ajuda se estivesse numa situação de perigo. Não o parecia estar, nem abria a boca para lançar uma sugestão sobre um rapto indesejado ou de mal-estar por ser "escrava" de Sena e da funcionária. Nem parecia estar a ler o livro para saber como é que a personagem fugira ao jugo do protagonista. Nada, nem um franzir de testa quando eu abria uma porta na conversa para que pudesse confessar o problema em que estava metida. Não, a jovem sentia-se bem, tudo indicava que sim, até pelo modo como se enfiava dentro dos lençóis da cama sem questionar qualquer desejo meu. Parecia feliz, sem sinal de uma crise como a que fizera Dolores fugir de Humbert, mal pudera para os braços de outro que a engravidara e, assim, provocara a sua morte prematura num parto no dia de Natal.

Tão embrenhado estava nestes pensamentos que prescindi dos favores sexuais da jovem, adormecida precocemente ao meu lado após ter passado mais uma tarde a esturricar ao sol e a devorar aquele livro. Fui colocando várias hipóteses para a sua situação, até que cheguei à mais delirante já de madrugada. E, todos sabem como durante a noite as situações que nos preocupam ficam ainda mais graves. Seria esta a questão: a jovem era prisioneira há muito tempo de Sena? Tanto que deveria já ser velha, até teria a mesma idade dele. Era obrigada a fazer tudo o que ele queria e nunca poderia afastar-se do palacete do Freixo sob pena de morrer imediatamente.

Diga-se que eu vira isto num filme há muito tempo, onde as pessoas viviam num paraíso perdido nos Himalaias e eram eternamente jovens devido a um elixir da juventude. Um dia, surgem os sobreviventes de um desastre de avião; um deles apaixona-se por uma das mulheres que moram no local e acreditam que podem fugir sem pagar um preço. Mal ela passa o túnel da montanha que os devolve à liberdade, morre de velhice nos braços do homem. Cansado da insónia, esqueci que a jovem seria vítima de alguma maquinação e abracei-me a ela. O calor do seu corpo e a paz do seu espírito adormeceram-me imediatamente.

O dia que se seguiu reservava-me uma grande surpresa. A jovem decidira começar a falar como se se tivesse quebrado algum encanto e fê-lo suavemente quando a meio da tarde me obrigou a acordar.

- Está um dia lindo e eu já acabei o livro. Posso dar-lhe mais atenção a partir de agora.

Não esperava este volte-face. Abri um olho e depois o outro - creio que foi isso que aconteceu - e vi os seus dois olhos bem perto dos meus. Raiados de uma cor de mel, como seria o sabor da sua boca momentos depois, e tão diferentes do que eu pensava serem. Ela estava diferente.

- Gostas de mim assim?

Não lhe disse nada, porque nem conseguia responder tão distraído que estava a saborear o seu corpo, como se fosse um peixe a abrir e a fechar a boca num aquário. Era assim que eu me veria se estivesse à distância de um metro e a observar o que se passava naquela cama. Também veria que a sua pele tão branca até o sol a tornar cor-de-rosa deixava agora ver melhor as veias azuis que escondia. Que faziam linhas retas e pequenos círculos ao longo do seu corpo. Afastei-me para a ver melhor e - espantado - entender que aquelas veias desenhavam breves cenas da minha vida. Não partes conhecidas mas outras, as que estavam para acontecer ainda e que o seu corpo rosado revelava como se fossem antevisões.

- Gostas do que estás a ler?

Ia responder-lhe que não, que o livro do Maugham era um pouco aborrecido, mas não cheguei a pronunciar a resposta porque entendi que se referia às cenas da minha vida que se espalhavam sobre o seu corpo. Não lhe respondi, porque ainda me encontrava entre o deslumbramento da descoberta, a impaciência da leitura e o receio sobre o que iria saber de mim próprio ao ler aquele corpo do princípio ao fim. Folhei-a rapidamente perna a perna; braço a braço; estômago a costas; ventre a ancas e, cansado de tanta ilustração, afundei-me preocupado seio a seio, como que a ganhar coragem para a leitura das veias que iriam sangrar a minha vida futura. Fiquei entre o seu peito alguns minutos, a tentar convencer-me de que ainda tinha muito sono e que poderia adormecer o tempo suficiente para que a cor rosa da sua pele regressasse ao branco anterior e a corrente sanguínea deixasse de ser reveladora. Curioso, no entanto, ia espreitando a própria pele dos seios que me aconchegavam para ver que tipo de imagens o sangue criara naquelas partes que agora eram tão rosa ao longo da colina como no pico.

Vamos chamar-lhes tatuagens porque pensar que eram as veias a fazer esses desenhos impressionava-me para além do que era capaz de aceitar no corpo de uma pessoa. A primeira tatuagem não era tão estranha como algumas das outras que veria a seguir. Pelo canto do olho, observara o entrelaçar das veias a desenharem-me no ato longínquo de mamar: um pequeno bebé de volta do seio minúsculo, de onde tentava sugar o leite.

Após ter lido na pele cor-de-rosa da jovem algumas histórias da minha vida, o meu primeiro desejo foi mais uma vez afastar-me. Não só da jovem, mas também do Freixo e de todas as loucuras que Sena me obrigava a viver há alguns meses. A culpa deste frenesi de experiências estava, pensei mais uma vez, no facto de eu ter assinado um contrato de prestação de serviços por um ano, a que não poderia negar-me a completar pois a verba que continuava a depositar na minha conta bancária era bastante necessária - repetia esta situação frequentemente para não a esquecer. Quanto muito poderia prescindir de uns dois ou três salários lá para o final...

Dias depois, Sena mandou chamar-me para jantarmos juntos. Estivera sem o ver durante esse tempo, apesar de ter reparado na sua silhueta quase sempre presente no escritório. Era capaz de o observar numa catividade frenética, intervalando longas horas sentado à secretária com buscas intensas nas prateleiras da biblioteca.

O convite para o jantar tinha um único propósito mas, antes de chegar esse momento, o meu anfitrião fez questão de efetuar um balanço do nosso trabalho.

- Estou satisfeito com as minhas descobertas e creio finalmente que vou chegar a algum lado desta vez. Quanto a si, tem sido uma ajuda preciosa. Até digo mais, nenhum dos seus antecessores tinha sido tão cooperante ou colaborado de um modo positivo. Por isso, e porque tenho absoluta confiança em si, gostaria de lhe pedir um favor. Creio que será capaz de o executar, para além de que terá todos os meios para ser bem-sucedido.

Depois de fazer estas afirmações, Sena calou-se. Fiquei à espera que me revelasse o pedido que pretendia fazer, mas tal não se verificou de imediato. Pelo contrário, saboreámos as febras de um peito de pato que estavam desfiadas dentro de um arroz que tinha ido ao forno e ficado bem tostado à superfície. Entretanto, a funcionária levantou os pratos sujos e trouxe os de sobremesa, tendo servido um gelado de limão que arrepiava a língua de tão ácido. Esta particularidade não seria um descuido da mulher, mas antes o modo como o meu anfitrião gostava a que aquela iguaria soubesse. Em seguida, levou-me até ao salão e, finalmente, revelou-me o que pretendia que eu fizesse.

- Sabe que vai haver um leilão na capital, onde estará um documento que gostaria de comprar.

Disse-lhe que desconhecia o facto, até porque ninguém me escrevia para o Freixo; já deixara de comprar jornais e revistas, e como em casa não existia rádio ou televisão, eram poucas as novidades que recebia do exterior.

- Isso não lhe faz mal! Provavelmente será essa a principal razão do seu bom desempenho.

Quando parecia que ia, finalmente, revelar o seu pedido voltou ao silêncio e a bebericar o licor que servira a ambos. Talvez este silêncio fosse forçado pela ponderação a que Sena se obrigava. Como entendi a seguir à revelação, o seu pedido era extra-contrato e interrompia a letargia em que me encontrava desde que chegara ao Freixo. Além disso, ainda faltava terminar o capítulo relativo a Somerset Maugham - "Muito pouco", esclareceu - antes de chegar o momento propício à tarefa que me propunha fazer.

Inesperadamente, Sena decidiu incluir extratos de uma pequena biografia que lera sobre Somerset Maugham: Em 1927, abandonou definitivamente a Inglaterra, após um escândalo em que se envolvera devido a ser homossexual e, estando casado com uma mulher, ter mantido durante toda esta relação um relacionamento com um americano. Mudou-se para a Riviera Francesa, onde comprou uma casa em Cap Ferrat, na qual dava festas sumptuosas e que quem as frequentou definiu como inesquecíveis. Somerset continuou a escrever várias horas todas as manhãs e sempre que podia viajava. Durante a II Guerra Mundial mudou-se para os Estados Unidos e tornou-se muito popular em Hollywood, após o que regressou à sua mansão francesa, onde ficou até morrer aos 91 anos.

Chegado o fim-de-semana, Sena voltou a chamar-me para dar desenvolvimento ao seu pedido. Escolheu mais uma vez a hora do jantar e, entre uma suculenta carne de javali e o habitual sorvete de limão ácido, expôs-me o plano. Que era simples e agradava-me bastante. Foi nessa altura que eu decidi fazer-lhe um pedido também. Reparara que na garagem do palacete estava estacionado um carro grande e antigo que, para além da poeira que o cobria. Recebi autorização para reparar o veículo abandonado e, gentilmente, Sena até me disse que se eu o conseguisse oferecer-me-ia o carro.

- Se ao terminar o contrato, o Chrysler estiver a andar, pode montar-se nele e regressar a casa. Faça bom proveito dessa geringonça velha.

Também me informara que ao oferecer a possibilidade de reparar o carro não me estava a conceder mais tempo livre do que aquele estipulado no nosso acordo.

- Primeiro a investigação, só depois a mecânica!

O carro era um Chrysler Imperial, com a matrícula HE-10-32, e já tinha sido usado numa fuga de presos políticos de uma prisão de alta segurança. O que o deixaram bastante destruído na parte da frente, depois de o carro ter servido de arriete contra o portão da cadeia e de lhes ter aberto as portas da liberdade. Sena acabara por o adquirir e mandado consertar com peças sobressalentes vindas da fábrica, ficando conforme o modelo original. Ao ver os quilómetros que estavam no contador, apercebi-me que o automóvel pouco circulara durante toda a sua vida. Ou seja, estava pronto para mudar de dono e levar-me a passear por onde eu quisesse, desde que cumprisse este último desejo de Sena. Aguardei que me desse informações mais detalhadas sobre as suas intenções - revelara-as de um momento para o outro, inopinadamente - no que respeitava ao documento que pretendia que eu licitasse no leilão aonde deveria comparecer brevemente.

Numa fuga de informação, que me pareceu controlada, Sena acrescentara posteriormente que, para além do documento, talvez me pedisse para licitar uma peça de mobiliário que também estaria no espólio à venda nesse leilão. Como era seu hábito, pouco mais revelou sobre o tema, tendo desviado o assunto para o carro.

- Vou só ler-lhe um relato que foi publicado num jornal desse partido sobre a fuga realizada neste carro que pretende consertar!

Procurou um recorte dentro de um álbum sobre carros antigos blindados e leu uns parágrafos: As portas fecharam-se com estrondo. Cerram-se os vidros inquebráveis. E o pesado carro investe. O guarda do túnel, instintivamente, de olhos arregalados, afasta-se. É apenas atingido num pé. Ainda no chão, abre fogo. Está dado o alarme. Percorremos o túnel. Ultrapassamos a casa da guarda. Desembocamos na parada. Atirámo-nos como um bólide contra o portão verde da saída. Este voou em estilhaços. Após uma curva apertada, houve que percorrer, debaixo do fogo, toda a estrada de acesso. Tudo corre bem, apesar de uma janela mal cerrada. As balas limitam se a riscar a chapa e o vidro.

- E, lá foram eles, causando um prejuízo danado na reputação da polícia política do ditador, a quem o carro também pertencia.

O meu anfitrião resolveu surpreender-me na manhã seguinte, mandando a funcionária acordar-me cedo. Bastante ensonado, e quase certo de poder ainda encontrar várias estrelas no céu, encaminhei-me até ao seu escritório com a máxima rapidez que pude. Não se tratava da necessidade de ditar apontamentos, como pude ver pela vestimenta que envergava - uma espécie de armadura de guerreiro medieval -, mas de me fazer reviver um momento da História.

- Bom dia! Decidi oferecer-lhe um presente excecional. Está pronto para viajar no tempo?

Respondi-lhe que sim, ainda com a voz entaramelada e o corpo desajeitado nos seus passos.

- Então, ponha esta armadura sobre o corpo e partamos.

As vestes que me obrigou a usar eram muito pesadas e dificultavam qualquer movimento físico. Um simples mexer do braço exigia um esforço para além do que o meu corpo pouco ginasticado estava habituado, mas não me deixei ir abaixo pois via Sena bastante à vontade dentro do seu fato metálico de cavaleiro medieval. Ele olhava-me de dentro do capacete que lhe cobria a cabeça, podendo ver pela fresta como os seus olhinhos brilhavam de gozo face à minha incapacidade. Não fez qualquer comentário, facto que me exigia um comportamento à altura. Afinal, estávamos a comparar um velho e um jovem e, não acreditava que ele me tivesse enfiado dentro de uma armadura perra e para si escolhesse uma bem oleada. A ambos, confirmei logo em seguida, a malha de ferro e os arneses de metal que completavam a armadura pesavam sobre os ombros e atrasavam o passo no caminho por entre as árvores das traseiras da mansão de Sena até que darmos entrada num campo aberto.

Sena caminhava à minha frente e só parou à entrada desse campo, que fora há séculos o de uma grande guerra. Olhou para a frente, em seguida para os lados, como que a sentir o peso da herança desses terrenos por onde teria passado parte importante da História do país e que agora estavam vazios. Disse-me que os mantinha como deveriam ter sido no antigamente, que mandara plantar novas árvores onde as crónicas reais afirmavam ter existido as que foram abatidas para construir armadilhas contra o exército desafiador, e que pagara do seu próprio bolso a escavação arqueológica nas quais encontrara novos argumentos para refazer a geografia de uma violenta batalha campal.

Informou-me que o governo também mandara fazer ali novas buscas arqueológicas mas, tendo realizado os trabalhos, estas de pouco acrescentaram aos argumentos com que os historiadores pretendiam esclarecer pormenores ainda ignorados. Dava estas explicações sentado numa pedra que parecia estar ali colocada de propósito para as suas palestras sobre a antiga batalha, tendo-me à sua frente e de costas voltadas para o campo de batalha. Creio que o fazia de propósito deste modo para que, ao mandar voltar o ouvinte na direção de onde tudo decorrera, obtivesse dele o pasmo que correspondia ao epílogo da sua narrativa.

Sem retirarmos os capacetes metálicos, Sena ordenou que eu deixasse as mãos livres das luvas feitas de malha de ferro, que protegeram em tempos os combatentes do gume afiado de espadas, e que observasse as ilustrações que, de mãos livres também, ia colocando num tripé posto à minha frente. Era um conjunto de imagens que mostravam como o combate se realizara ali onde estávamos, a meio de um agosto de boa memória para os seus antepassados. A primeira imagem que colocou sobre o encaixe de madeira que encimava o tripé mostrava uma fotografia de satélite tirada recentemente. Era muito clara e detalhada nos pormenores que exibia: árvores, colinas, rochas e o campo limpo de mato onde tudo teria acontecido. Em seguida, um desenho do mesmo local como se pensava ser há vários séculos: com o mesmo género de árvores, colinas, rochas e um campo minado de armadilhas para o exército inimigo.

Sena foi mostrando mais ilustrações e, a cada gesto, ouvia-se o barulho da sua armadura interromper o silêncio no antigo campo de batalha, como o ressoar do ruído metálico que teria sido de vitória para os vencedores naqueles dois dias de enfrentamento entre as hostes dos dois países e insuportável nos dias seguintes para os vencidos que, contam as lendas, teriam sido em número de milhares. Havia mesmo textos de um cronista estrangeiro, que vinha com o exército invasor, que referia em mais de cinco mil o número de vítimas deixadas mortas ou à morte neste campo onde estávamos agora a reviver esse combate e que foram comidas durante anos por aves de rapina e cães, após serem saqueadas de tudo o que traziam por populares que moravam nas redondezas.

Nessa série de imagens pintadas como se fossem da própria época da batalha, Sena escolhera as mais importantes para acompanhar com breves explicações enquanto noutras se estendia no comentário até à exaustão. Eu não tinha qualquer dificuldade em compreender o paralelismo que Sena fazia questão de me mostrar ao comparar as guerras do presente com as do passado, designadamente porque estar à torreira do sol dentro da armadura que me mandara vestir já era suficiente para sentir a alteração dos tempos e o esforço que teria sido necessário aos militares de então.

Após ter mostrado todas as ilustrações, Sena mandou-me pôr de pé e atirou-me uma espada para a mão.

- Vamos agora à parte prática! Ponha as luvas para não lhe decepar uma mão...

Não sei de onde ele tirou, como se de um passe de mágica se tratasse, aquelas duas armas. Também não tive muito tempo para pensar no assunto pois, mal escondi as mãos debaixo da cota metálica, já sentia a sua espada a bater-me no antebraço e, repetidas vezes, ouvi o silvo do instrumento a passar perto. No fim desta simulação, ordenou que retirasse o capacete e obrigou-me a deitar no chão, de ouvido sobre a terra. E disse apenas:

- Ouça o passado enterrado sob o chão que está a pisar.

Foi o que fiz, mesmo que não tenha sido capaz de escutar um ruído sequer que ainda ecoasse daquela batalha sangrenta.

Quando terminou a encenação bélica de Sena, regressámos a casa. O que precisava era de tomar um banho mas o meu anfitrião não o deixou fazer. Queria entregar-me a missão já anunciada e foi o que fez ao encaminhar-se para o escritório, onde só aceitou que retirássemos os capacetes, de modo a podermos falar, e as luvas, para poder entregar-me um envelope. O documento estava selado com um lacre e não pude ler o seu conteúdo, tendo recebido as instruções de viva voz. O modo como o fez manteve a estranheza da maioria dos hábitos de Sena. De pé, com as armaduras postas, esticando a sua mão para a minha e passando o testemunho como se revivêssemos uma cena medieval! A situação não era estranha - nunca o era com ele -, mas o que se seguiu teve esse lado, pois Sena obrigou-me a jurar que cumpriria todos os preceitos que estavam nos textos e, avisou, que só após o cumprimento destas ordens é que terminaria o nosso contrato.

- Se não o fizer, não ordenarei a transferência dos próximos salários nem lhe oferecerei o carro conforme prometi!

Sena fazia estas afirmações de cara bastante séria, talvez a mais dura que já lhe observara em todos os meses em que fora seu empregado de escrita. Confirmei-lhe a intenção de cumprir as instruções, tendo dito apenas que confiava que fossem legais. Não cumprir a lei seria a única objeção, salvaguardei, para o caso de estar a meter-me nalgum imbróglio.

- Quanto a isso não se preocupe. Sou o primeiro a respeitar a lei e, portanto, não o obrigaria a fazer algo que eu próprio não aceitaria.

Apesar de o ter pressionado a revelar a missão que me dava, o meu anfitrião negou-se a desvendar qualquer pormenor do que me esperava. Pelo contrário, repetiu que só poderia abrir o primeiro envelope quando saísse do Freixo e que me seria depositada a verba necessária para pagar o serviço logo que partisse. Entregue a missão, Sena aceitou que retirássemos o resto da armadura e nos puséssemos à vontade. Assim fiz, deixando-a sobre o chão de madeira, após o que fui para o meu quarto preparar-me para a partida que se verificaria na manhã seguinte. Enquanto caminhava, segurava bem o envelope e questionava-me se o manteria selado até à manhã seguinte. Mas achei por bem fazê-lo, não fosse Sena apanhar-me em incumprimento.

Amanhã: O leilão do espólio de Pessoa

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